Reparei hoje no que comuniquei aos microfones da TSF: «Julgo que estas eleições marcaram o regresso da política, da política como coisa complexa, não da política com os assessores todos previsíveis, a pensar que as campanhas e os resultados são uma espécie de passeio, voltámos ao risco, à aventura, à vontade, à possibilidade da criatividade desempenhar algum papel».
Contudo, a grande lição tem a ver com o silêncio maioritário do eleitorado. O nível da abstenção e do voto em branco confirma que o povo calou. Ora, quem cala nada diz (quis tacet nihil dixit), o que é bem diferente do "quem cala consente", apesar de podermos também acrescentar que os silenciosos, em parte, consentiram no regime e na opção europeia, e, noutra parte, calaram quanto ao modelo de governação. A maioria do povo foi além do indiferentismo, pisou as raias do azedume, mas ainda não entrou em explosão e em revolta.
A maioria puniu a partidocracia e a maioria dos que expressaram o voto reagiu contra este sistema de economia privada sem economia de mercado. Porque não estão apenas desprestigiados os partidocratas, mas também os empresários e os homens de negócios, onde a tradicional Dona Maria da Cunha parece ter-se enredado nas teias da percepção da corrupção, embora o que parece talvez seja inferior àquilo que naverdade é. E aqui a classe política tem culpas no cartório, não por ser maioritariamente desonesta, mas por não conseguir dar uma adequada imagem de regeneração e de arrependimento, livrando-se efectivamente dos mecanismos degenerados típicos do bloco central de interesses e da sua técnica corrosiva e devorista da nacionalização dos prejuízos e da privatização dos lucros, através do clientelismo, do nepotismo e das minúcias dos jobs for the boys, com o prévio estabelecimento de leis orgânicas de reforma do Estado feitas segundo o modelo dos boys for the jobs.
O PSD ganhou muito em confiança quando se distanciou de Dias Loureiro e o PS não se apercebeu dos efeitos Freeport com profundas covas da Beira, pelo que todos passámos a dependener das andanças da Dona Judite e das magistrais fugas de informação com reportagens em directo sobre buscas e comunicados das centrais de investigação criminal, com "talk show" de imitadores dos Garzón e dos Di Pietro, por cá em dó menor. Daí a emergência do BE que, contudo, ainda não se livrou de certa tralha estalinista da ex-UDP, como vai tornar-se patente na campanha para a autarquia lisbonense, onde Fazenda poderá ser o melhor aliado de Santana Lopes. Aliás, o BE, poderia transfiguarar-se num produto semelhante aos verdes franceses, para que o PS pensasse que poderia entrar em aliança com os verdes alemães e para que todos esquecessemos que os bloqueiros ainda estão presos à varinha mágica dos nacionalizados, nossos, do onze de Março de 1975.
Infelizmente, o sinal identititário da esquerda portuguesa, vencedora no passado domingo, tem a ver com a promessa de aumento quantitativo do intervencionismo dos aparelhos de poder na economia e na sociedade, quando o que nos falta face aos restantes colegas da União Europeia é a democracia consociativa do menos e melhor Estado, com bem mais sociedade e aumento qualitativo do aparelho de poder. Mas quando o socratismo, na sua teimosia co-incineradora, pensou que o combate às corporações estava no ministerialismo, aconteceu o pior: esta desinstitucionalização de professores, magistrados, médicos, polícias e empresários. Daí que olhe com mágoa para o fogo lento que vai destruindo a imagem do próprio Banco de Portugal e o prestígio da personalidade de um Vítor Constâncio, pessoa que me habituei a respeitar e com provas dadas de patriotismo científico, onde os eventuais erros são compensados por uma actividade cívica acima de qualquer suspeita.
O Banco Portugal resistiu ao 5 de Outubro e os próprios carbonários mandaram brigadas para o proteger. O 28 de Maio nunca lhe tocou, apesar do caso Alves dos Reis e o governador Inocêncio Camacho, um republicano histórico, foi mantido pelo primitivo salazarismo, tal como o 25 de Abril não deixou que o PREC o contaminasse. Seria trocarmos de rumo darmos mais razão a certos arguidos do que optarmos pela continuidade institucional de uma entidade cada vez mais necessária à república. A eleição de dois ou três deputados europeus e o ódio ao PS não pode levar-nos a confundir o trigo com o joio. Contra ventos e tempestades, continuo institucionalista e tenho pena que, até com erros comunicacionais do próprio, se deixe queimar uma personalidade que bem poderia ser um futuro primeiro-ministro de Portugal no próximo governo de acordo interpartidário, no caso provável de não haver maioria absoluta de nenhum partido e de não nos suicidarmos com um defunto bloqueio do centrão.
Foi com Constâncio que o PS retirou o dogma marxista do respectivo programa e só depois, com Cavaco, e através de uma comissão presidida por Durão Barroso, é que o PSD fez o mesmo. E não foram Constâncio nem Cavaco os criadores do Bloco Central. Aliás, Constâncio poderia ter sido o primeiro-ministro alternativo a Cavaco, antes da queda do Muro, quando o PRD de Eanes poderia ter preferido um governo com PS e CDS, dado que o PSD de Dias Loureiro apenas tinha maioria relativa. Mas o presidente Mário Soares preferiu permitir a criação de maiorias absolutas do actual detentor do palácio de Belém, gerando esta tentativa de cavaquização do PS a que se chama socratismo...
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