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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.11.07

Eu, abrileiro, me confesso...



Um amigo, da velha esquerda liberdadeira, enviou-me a Carta aos Puros de Vinicius de Moraes, escrita na década de cinquenta do século XX. Olhei-me ao espelho da geração abrileira a que pertenço, onde uma certa esquerda lutava contra uma certa tirania, e uma certa direita contra certa tirania, ambas coincidindo no estilo. E tudo na complexidade de um processso que foi de antes e de após o 25 de Abril, mesmo quando os irmãos em disputa alinhavam em campos concorrencialmente adversários.



Hoje, essas tiranias desvaneceram-se e, consequentemente, as esquerdas e as direitas, que viviam no encantamento das causas, ficaram desempregadas, como se tivessem descoberto a Índia, sem direito a visita à Ilha dos Amores. Porque venceram os tais agentes infra-estruturais do poder bancoburocrático e do totalitarismo doce, assente na vontade de servidão. Aliás muitos dos mais ruidosos abrileiros, armados em saudosistas da revolução perdida, não percebem que os respectivos opositores, também abrileiros, mas do anti-PREC, como eu, são tão ou mais anti-tiranias do que eles.

Acresce que qualquer dos filhos e netos desses abrileiros, olhando o retrato mental dos pais, não consegue distinguir tais irmãos-adversários. Tal como eles e todos nós não percebem as oposições que marcavam os almeidistas e os afonsistas, da I República, ou os progressistas e regeneradores, do rotativismo. Obrigado, Paulo, pela lembrança! Lutemos contra o desemprego! Navegar é preciso, sobreviver não é preciso...

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens ilumidados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichibéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o homem alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.