a Sobre o tempo que passa: O clero, a nobreza, os fidalgotes e a falta de povo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.3.05

O clero, a nobreza, os fidalgotes e a falta de povo




De há uns tempos a esta parte, grande parte dos comentadores e analistas lusitanos vem observando que Portugal continua a estar dependente das corporações. E cada um, conforme as suas, deles, tendências freudianas, atira, para cima do respectivo fantasma dilecto, o labéu dessa feia palavra que nos evoca a Constituição de 1933 e o salazarismo, de más memórias. Aos costumes, apenas diremos que, apesar de sermos um país relativamente pluralista, uma sociedade relativamente aberta, uma democracia relativamente competitiva e um Estado relativamente de Direito, falta-nos muita boa educação para atingirmos os níveis das comunidades de homens livres e da autonomia das pessoas, enquanto indivíduos que pensam o sentimento pelas próprias cabeças e troncos, actuando com os membros em conformidade, sem porem os pés no sítio da testa. Tentemos uma explicação sócio-satírica, sem marxianos liberalismos, mas com alguma historicidade viva.



Julgamos que a sociedade de ordens e a sociedade de Corte do "Ancien Régime" absolutista não foram suficientemente decepadas pelo individualismo regenerador do movimento liberal que, desde o início, se viu a braços com um longo conflito entre o partido da tropa e o partido dos becas, juristas ou magistrados, com o primeiro a querer conservar a função clássica da nobreza e o segundo a querer usurpar a missão inerte dos clérigos e teólogos.

E, a partir de então, quase todas as nossas chamadas revoluções viveram esta tensão, desde o 28 de Maio, onde o partido da tropa indicou o venerando chefe de Estado e o partido dos becas nomeou o tal Salazar que acabou por instaurar o clericalismo de uma autêntica república dos catedráticos, transformando as faculdades de direito, isto é, a união da faculdade de cânones com a faculdade de leis, nos verdadeiros seminários do regime.



Também com o 25 de Abril, o conflito entre a vigilância militar revolucionária e os chamados constituintes e constitucionalistas manteve o pano de fundo que atingiu o clímax quando o presidente-tutor, político-militar, se civilizou pelos votos e recebeu, nos costados, a agressividade dos Soares e Sá Carneiro, herdeiros dos velhos becas, fortemente apoiados pelos cultores do Texto. Isto é, por uma classe política dominada pelos novos teólogos que, entretanto, multiplicaram as escolas de becas pelo quase infinito das três dezenas, mantendo, contudo, o rigoroso controlo do restrito corpo de doutores que, durante décadas, deixou intacto o "numerus clausus" herdado do salazarismo e do caetanismo, quando apenas existiam duas escolas de leis.

Terá escapado ao atavismo a brevíssima I República, dado que, ao lado de becas-politiqueiros, como Afonso Costa, surgiram inúmeros médicos, segundo o paradigma de António José de Almeida. Também com a passagem do abrilismo para o cavaquismo deu-se aa emergência dos cultores da "rainha das ciências sociais", como mestre Aníbal, coisa que desviou muito do nosso falso messianismo para o mito da macro-economia. Acabou, contudo, por acontecer aquele desespero da erosão do poder que nos obrigou a chamar um "engenheiro", desde o chamado "picareta falante" ao presente de Sousa, ainda sem alcunha adequada, porque ainda se não abriu o melão. Entretanto, começam a mostrar os ímpetos conquistadores outras corporações, desde a eterna casta banco-burocrática, reanimada pela engenharia financeira, à novíssima fauna dos patos bravos e da futebolítica, esse sucedâneo de povo, com muita pronúncia do Norte.



Acresce que emergiu também o pequeno núcleo dos catolaicos que, apesar de dispersos por mais de uma centena de seitas neocatólicas, conseguiram manobrar brilhantemente nos meandros das chamadas elites, confirmando o que ainda hoje foi observado por um antigo professor na Universidade Católica, Vasco Pulido Valente: "em 1980, os velhos ministros de Salazar já ensinavam na Universidade Católica, que desde essa altura se tornou na principal escola de quadros da direita" e "não por acaso aumenta constantemente o número de políticos que exibem com clamor o seu catolicismo. Eles sabem que precisam de uma referência ao mesmo tempo popular e sólida para moderar ou conter o 'politicamente correcto'".

Aliás, o mestre dos comentaristas, antigo secretário de Estado da cultura e deputado do PSD, nem sequer referiu que Paulo Portas e Manuel Monteiro são dois dos brilhantes exemplos dos graduados pela entidade em causa. O que talvez explique as confiantes palavras do conformador da mesma, o actual presidente da Conferência Episcopal: "não tenho razão para recear as relações entre a Igreja e o Estado em Portugal, além daqueles assuntos que voltam, de vez em quando, à agenda política, como é o caso de uma possível lei referendada sobre o aborto".



Apenas acresentaremos, à maneira de Garrett, que a sociedade já não é o que foi, nem pode voltar a ser o que era. A velha nobreza militar acabou por ter Portas como o grande comprador de todos os brinquedos para as próximas décadas. E os velhos clérigos legistas, produtores dos Durão e dos Santana, com tantos doutores das privadas e outros mais produzidos nas Espanhas e araganças dos doutorados por correspondência ou permanência sazonal, que aqui apenas precisam de registo, conforme decreto inspirado por Freitas do Amaral, até correm o risco de ter como colegas um qualquer Marçal de Elvas ou uns desses que, discretamente afastados, por suspeita de plágio, conseguiram obter o título na concorrência lucrativa que aceita a norma do princípio de Pedro, onde os acasos nominativos não são simples peles de coincidência. E a casta banco-burocrática nem sequer parece ter força para deitar abaixo uns sobreiros, dado que o Ministério da Agricultura não autorizou o corte de sobreiros em Benavente, na golfíca Herdade da Vargem Fresca. Valha-nos o espírito que ainda é santo, não comercial, nem de Lisboa...

E no meio de tanta penumbra e desemprego de jovens licenciados em ciências ocultas e engenharias de província, apenas se confirma que a Olivedesportos passou a mandar na comunicação social e que continuamos a ser algemados, nos interstícios transicionológicos, tanto pela gerontocracia como pelo partido dos fidalgotes, isto é, não pela nobreza da função, mas antes pelos "filhos de algo", isto é, pelos que, tendo nome de família, não precisam de pagar cem euros por mês para poderem frequentar um estágio de pós-licenciatura num desses hospitais estaduais, agora dominados por gestores profissionais que ganham mais do que o próprio Presidente da República. Quando é que o povo acede ao poder, sem ser pela via dos empreiteiros, futeboleiros e quintareiros das celebridades?




Para os devidos efeitos, se informa que várias universidades e institutos politécnicos, públicos, publicamente privatizados, concordatários e lucrativos, abriram, na raia de Espanha e arredores, vários cursos rápidos de introdução à leitura de declarações teológico-políticas, emitidas pelo episcopado lusitano. Na Universidad Luso-Andaluza dos Sinais dos Tempos de Ayamonte, o Professor Paulo Portas fará a hermenêutica das seguintes palavras de D. José Policarpo, tão transcendentalmente politiqueirezas: "As pessoas que vão fazer campanha pelo não são os antieuropeístas do costume...Nada obrigava a optar pelo modelo de tratado constitucional como não era necessária uma introdução, invocando a cultura da Europa. Não terem reconhecido que o Cristianismo é uma dessas estruturas culturais é um problema de objectividade cultural, não é uma questão de fé". Na Universidade Leonesa Gaita de Foles, de Miranda do Douro, com a orientação do Professor César das Neves, glosar-se-ão outras da mesma entidade: "esta moda de reduzir a figura de Jesus a um homem é o resultado de um contexto cultural que dificilmente aceita a dimensão transcendente da vida". Já na Universidade Luso-Galaica D. Teresa, de Tuy, será comentada, pelo Professor Engenheiro Jardim Gonçalves, uma frase célebre de D. Armindo Coelho: "o neo-pelagianismo que vigora na mente de quantos - e são tantos - não querem outra salvação senão a que eles idealizam e entendem conseguir por si mesmos".

Segundo consta, o pelagianismo é uma teoria alegadamente defendida pelo monge Pelágio (360-435), originário das Ilhas Britânicas, que, segundo os seus detractores, defendia que o pecado original não contaminava a natureza humana porque ela tinha sido criada por Deus e era por isso divina. Esta doutrina foi condenada como herética pelo Concílio de Cartago, em 417.

Todos os cursos, patrocinados pelo Millenium BCP, são equivalentes aos mestrados portugueses, bastando, para tanto, um mero registo, de acordo com a legislação em vigor. Dan Brown não será usado como bibliografia, o eurocepticismo de Paulo Teixeira Pinto não será recordado e os participantes receberão, para além do adequado certificado anti-herético, um indulgente argumentário, com fotografias a cores, para ser usado na próxima campanha do referendo sobre a IVG. Outros anti-europeístas do costume, como o professor da Universidade Católica, Doutor Jorge Miranda, não foram convidados. Cerca de metade do eleitorado europeu corre também o risco de excomunhão. Amen!