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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.11.06

Cultura, sociedade de Corte e cinegética do subsídio, com muita padrinhagem...


A Doutora Isabel Pires de Lima, ao ler o jornal "Público" de hoje pode respirar de alívio: um estudo da União Europeia mete finalmente cunha pela Cultura fazendo-a rimar com PIB. Até se define a dita em sentido amplo:
inclui as chamadas "indústrias culturais" (cinema, música, livro, jogos de vídeo), os media (imprensa, rádio e televisão), os sectores criativos como a moda, o design, a arquitectura e a publicidade, o turismo cultural e o sector tradicional das artes (espectáculos ao vivo, artes visuais e património).

Não consta que, no mesmo estudo, haja desenvolvimentos sobre aquilo que marca o processo da coisa em Portugal: o regime da caça aos subsídios estatais e dos mecenas privados, sobretudo das entidades místico-bancárias, onde, mais do que esta ou aquela ministra, manda a senhora Dona Maria da Cunha.
Já em 1873, Ramalho Ortigão observava que a mocidade vive nas antecâmaras do governo como os antigos poetas do século passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do estado. Os moços são bacharéis e querem bacharelar à acerca da coisa pública e à custa da mesma coisa acerca da qual bacharelam.

Porque, mais de cinco quartos de século volvidos, continuamos a viver o mesmo regime de subsidiocracia, com a consequente feudalização, com a habitual procissão dos criadores culturais à procura de esmola junto de um qualquer influente na "network structure" dos amiguinhos, especialistas na engenharia da posta e do sindicato das citações mútuas. Com efeito, a Dona Cultura em Portugal, face à ausência de mercado e da autonomia da sociedade civil, continua asfixiada pela tradicional poder banco-burocrático que manda nos circuitos das galerias, das editoras e dos jornais, num processo que se estende a certos segmentos da própria investigação científica, dado que mesmo a nível das estaduais fundações continua a vigorar o arbítrio, dado que a escolha dos integrantes dos painéis dos distribuidores do naco depende, muitas vezes, não do critério objectivo da obra produzida, mas da partidarite ou das ambições de uma qualquer personalidade ambiciosa.

Uma, conheço eu, que, para preparar uma campanha eleitoral em curso, escolheu assessores de chefe de governo que nunca foram reconhecidos como especialistas pelos pares, para agora vermos como obrigou os afilhados a terem que participar em listas de apoio à respectiva candidatura a um lugar estadual, sem qualquer laivo de disfarce, dado que até aqueles que ele enfiou no emprego têm de assinar o processo, não faltando sequer o recurso a um assessor de um conhecido grupo parlamentar.




Portugal, onde assim se desenvolvem novos ritmos típicos das ciências ocultas, é mesmo um museu daquilo que Norbert Elias qualificava como sociedade de Corte, onde dominam os tais jogos da Corte, essas formas subtis de rivalidade e de competição, visando a obtenção do favor do Príncipe.

Essas formas que marcam os ritmos de competição política, mesmo depois da abolição do
ancien régime, dada a circulação de modelos, com a cópia de atitudes e comportamentos dos cortesãos por novos grupos sociais. Eufemizou-se ao máximo a violência física, substituindo-se esta pelo espectáculo das rivalidades de partidos e pessoas, com o afrontamento de ideias e o antagonismo de projectos. A emergência das sociedades contemporâneas tem como pilar esta substituição da violência física exterior por um auto-constrangimento, largamente aceite, pelo que se torna possível o controlo de pessoas e povos sem o recurso à violência física, levando, por exemplo, à aceitação como normal do acto de obediência às leis editadas. As infracções individuais a essas leis são, aliás, consideradas como ilegítimas pela maioria das pessoas.


Gera-se assim uma espécie de automatismo dos auto-constrangimentos.
Se este modelo de padrinhagem continuar a dominar a chamada cultura e a chamada investigação científica, sem qualquer critério de objectividade, poderemos alimentar a vaidade, mas não faremos assentar o necessário patriotismo científico na autonomia dos homens livres, de antes quebrar que torcer, que homens da Corte não podem ser...