a Sobre o tempo que passa: Das virtudes da sociologia ao regresso dos fantasmas teocráticos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

3.12.06

Das virtudes da sociologia ao regresso dos fantasmas teocráticos




A sociologia tem a grande virtude de confirmar cientificamente aquele bom senso do empirismo que deve possuir qualquer homem comum disposto à aventura de viver. Reparo na jornalada de hoje, noto
que a maioria dos jornais italianos mostrou-se impressionada pela demonstração de força da direita italiana e do seu líder Silvio Berlusconi, que sábado fez sair à rua perto de um milhão de pessoas contra o governo Prodi. Tudo por causa do orçamento europeu de luta contra o défice. Reparo também que a esamagadora maioria da população portuguesa considera que a Igreja de Roma devia permitir o casamento dos padres, secundando a tese de Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento e que os jovens portugueses saem mais tarde de casa dos pais, adiam o casamento e os filhos e sujeitam-se a empregos precários, revela um estudo sobre o perfil da juventude portuguesa que o Governo apresenta hoje em Braga.

Noto que José Miguel Júdice é elogiado por Vital Moreira, dado ambos desconfiam do actual modelo de forças armadas, agitadas pelos passeios de oficiais e sargentos e por fugas de cartas das chefias militares, secundando a posição dos subordinados e confirmando que Portas fez omeletas sem ovas quando quis indemnizar combatentes. Confirmo que a frase de Mouzinho de Albuquerque sobre a circunstância de este país ser obra de soldados começa a perder sentido. Ela surgiu quando a monarquia liberal enveredava pela nossa última aventura de construção imperial e continuou a ter sentido durante a Grande Guerra, quando a República procurou cumprir o grito dos "heróis do mar" contra a humilhação do Utimatum. Ainda tem sentido quando fazemos discursos de exaltação dos capitães de Abril, por terem derrubado o regime que os generais e tenentes do 28 de Maio de 1926 tinham edificado.



Manteve também sentido quando o salazarismo da guerra colonial condecorava no 10 de Junho os que morriam contra os ventos da história, em memória de Chaimite ou de Naulila, mas hoje dizer soldados é dizer voluntários ao serviço da alianças internacionais e de deliberações da ONU, na Bósnia, no Afeganistão, em Timor ou no Líbano, onde os soldados até podem ser da GNR ou polícias como os GOE. Os soldados já não existem para cumprir "Os Lusíadas" em defesa do quadro resistente da pátria ou dos seus domínios e conquistas. Agora, temos de aprender a conjugar as novas realidades do poder global e aprender a conjugar o velho verbo com a verba dos nossos impostos e o esotérico quase tecnocrático dos manuais do novo conceito estratégico de defesa nacional, onde até brilhou, com muitos negócios e contratos de equipamento um ilustre sujeito, especialista em crítica de cinema, chamado Paulo Portas.

A sociologia pode transformar a democracia do discurso e Péricles em mera sondajocracia referendária, com os seus meandros organizacionais, onde grupos minoritários podem gerar um resultado assente na mistura de indiferentismo com militância. Porque uma minoria fortemente organizada pode levar a que, numa consulta técnica do abstracto povo, o Estado seja obrigado a manter polícias, tribunais e prisões para a defesa de valores que não são comunitariamente assumidos, porque sempre foram uma questão da ciência dos actos dos homens como indivíduos, a moral, e não uma questão dos actos do homem enquanto membro do Estado, enquanto cidadão.






Quando digo que, como cidadão, direi sim à questão da IVG, nada digo da minha posição como homem, na minha solidão diante do cosmos. Não quero é que o Código Penal, o polícia, o juiz e o guarda prisional interfiram na minha zona do sagrado individual, onde quero viver como penso sem pensar como vou vivendo. Detesto também que a religião interfira na política, porque sou fiel àquela laicidade que manda pensar a polis como se Deus não existisse, para os que acreditam em Deus se defendam do fundamentalismo teocrático ou dos laicismos fundamentalistas que mandavam enforcar o Papa nas tripas do último padre ou levavam um defunto ministro da justiça e dos cultos a fazer passar pela cadeia do Limoeiro a padralhada, para a sujeitar a medições antropométricas, a fim de cientificamente detectar as eventuais propensões inatas para o crime, segundo as teses de Lombroso.