Para além da fachada escavacada, há restos de frescos nas velhas paredes
Não me apetece comentar o caso Veiga, a crise da elefantíase legiferante, a constitucionalite aguda ou o estudo da União Europeia que nos transforma no país com mais funcionários públicos per capita, para vergonha, não dos funcionários, mas dos gestores que não lhes dão utilidade, mas que fazem discursos sobre a reforma e a modernização da administração pública, pelo menos desde que Marcello Caetano foi ministro da presidência, há mais de meio século.
Somos como este prédio que retratei na Avenida da Liberdade. Mantemos a orgulhosa fachada, escavacamos por dentro, vamos destruindo os frescos e sustentamo-los com ferro importado, para glória dos patos bravos que nos vão reconstruindo, enquanto vemos, ouvimos e lemos o sindicato dos principais patrões, os da banca, pressionando publicamente governos e parlamentos, enquanto os pretensos intelectuais continuam suas disputas escolásticas, à procura da via ideológica justa e quiçá do Texto que nos dê a ilusão de abrir todas as portas dos amanhãs que cantam, desfazendo todas as dúvidas de quem sofre a angústia da procura.
Não, não vou comentar a homenagem do samba ao grandioso líder da nossa oposição política, ou os meandros da crise coligativa na autarquia lisbonense. Nem sequer vou comentar os resultados das eleições de ontem da minha escola, onde um ex-assessor do primeiro-ministro Cavaco Silva, em coligação com o PCP, se opôs ressaibadamente a uma frente ampla, não politiqueira, onde participei. Apenas quero agradecer aos colegas que em nós confiaram, vencendo o complexo dos ressaibados e o obediencialismo dos subsidiados.
Voltando aos meandros do nosso intelectualismo, apenas observo que, entre os velhos e novos clérigos, que venha o Diabo e escolha. Por mim, prefiro os que não alinham na denunciação de ouvida e detestam burocratas broncos e sargentos de caserna, desses que muitos pobres de espírito qualificam como homens de sucesso, só porque conseguiram a adequada colocação num posto de vencimento, obtido através de adequada cunha junto de um qualquer senhor ministro ou comendador e que se sentaram em lugar cimeiro da pirâmide da distribuição do poder, onde um mais um acabam por poder ser menos do que um.
Face a esta secular frustração da não organização do trabalho nacional, onde continua a faltar o risco da avaliação do mérito e a incapacidade para se premiar a irreverência, o intelectual português tem caído no vício de uma atitude pretensamente anti-religiosa, mais pelicularmente ateia do que gnóstica, resvalando quase sempre para os abismos de um materialismo, chame-se sensualismo, utilitarismo, positivismo, naturalismo, marxismo ou neolibismo. O que é particularmente notado nos que acedem ao pretenso do pensamento pela leitura de vulgatas ou obras de propaganda.
Felizmente que alguns desses novos clérigos, quando passam da "intelligentzia" à militância, podem atingir aquele nível de autenticidade e da ética da convicção que lhes dá um estado de ascese, a qual, mesmo quando a ideologia continua materialista, assume a inevitável beleza do espírito. Porque até em pleno niilismo e relativismo é possível encontrar a tal dúvida criadora que nos faz acalentar a procura.
Peço desculpa por não agradecer, de forma individualizada, a longa lista de blogues de referência e aos amigos que saudaram o lançamento, em regime experimental dos portais história do presente e biografia do pensamento político. Tentarei fazê-lo, em tempo oportuno, de forma mais sistemática, embora, desde já, tenha que pedir perdão pela circunstância de continuar bicho de mato, neste processo onde não gosto de ceder ao sindicato das citações mútuas. Não posso contudo deixar de mandar um grande abraço a certos amigos que vêm de outros tempos e com quem conjugo o sempre, com especial destaque para o Zé Mateus e para o Rui Matos, aos quais devo públicas desculpas pelo meu estado de quase reclusão na concha do lar.
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