a Sobre o tempo que passa: Um quarto de hora antes de morrer, o regime ainda fazia discursos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

18.1.07

Um quarto de hora antes de morrer, o regime ainda fazia discursos


(imagem número um, recolhida no "site" do QREN, definindo o conceito de ciência, mas sem a presença de uma excelência ministerial que teatralize o professor Pardal da versão brasileira de Walt Disney)

Hoje, a minha escola comemora o 101º aniversário do diploma legal que a instituiu. Era chefe de Estado o senhor D. Carlos e chefe do governo o senhor José Luciano de Castro Corte Real. Estávamos em monarquia, a dois anos do regicídio, e ainda havia um partido progressista. Um quarto de hora antes de morrer, o regime ainda estava bem. Vieram mais três regimes e a escola, apesar de vários diplomas que lhe decretaram o fim, ainda sobrevive, mesmo sem resistir, nem que seja submetendo-se para sobreviver, para que venha a hora de lutar, para continuar a viver.

Hoje, felizmente, já não há o tempo dos homens-lobos-dos-homens em estado selvático de natureza, porque a universidade já descobriu o caminho marítimo para a Índia e tal como a Europa que ontem fez uma refeição no reatuarante "Crocodile" já "tem um rumo" e pode fazer o discurso das novas palavras que são chave da modernidade: (i) Solidarity (ii) Sustainability (iii) Accountability (iv) Security (Barroso, a saudar a presidência de Merkl, do "juntos com sucesso"). Coisa que afinal depende do que vai acontecer com a seguinte notícia: o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, tentou na quarta-feira reforçar o apoio entre os republicanos ao aumento da presença militar no Iraque, mas um grupo bipartidário de parlamentares prepara uma resolução na tentativa de barrar o plano de Bush no Congresso.


(imagem número dois do mesmo "site", visando ilustrar o conceito de debate público: faltam os assistentes, mas a Fátima Campos Ferreira sempre pode convidar o Conselho de Reitores)

Nas escolas e nos países, já não há homens-lobos-dos-homens, mas antes homens-ratos-dos-homens, porque os lobos apenas defendem os respectivos territórios e não comem os da mesma espécie, como claudicam os que não andam de espinha de rectum. Por cá os ratos, vestidos de homens, invocam o transcendente sem imanente e fazem discursos, para que chorem as pedras das calçadas, lavam as mãos como Pilatos e mandam libertar o Barrabás, iludindo-se com muitos micro-autoritarismos subestatais.
Como observava Américo Tomás, nas suas memórias, no primeiro dia do ano de 1974, tudo se passou como em iguais dias dos anos imediatamente anteriores... Estamos a referir-nos, evidentemente, àquele venerando chefe de Estado que iniciou, às 22 horas do dia 24 de Abril de 1974, a sua última visita oficial, à Feira das Indústrias, na Rua da Junqueira.

Porque às 22 horas e 55 minutos transmite-se a senha para o desencadear do movimento através dos Emissores Associados de Lisboa: a canção de Paulo de Carvalho E depois do adeus. Porque às 0 horas e 25 minutos a Rádio Renascença emite a canção de José Afonso Grândola Vila Morena, senha confirmadora do movimento

Apetecia inscrever-me no espírito do Pacto da Granja, participando, como membro dos reformistas na necessária aliança com os históricos, em nome da Maria da Fonte, do desembarque no Mindelo e do Sinédrio. Sempre gostei muito do Manifesto de Frei Francisco de São Luís de Dezembro de 1820. É por isso que estarei logo ao fim da tarde, mesmo sem poder estar presente, na Torre do Tombo, para saudar o Edmundo Pedro e os seus Combates pela Liberdade. A coisa já vem de Gonçalo Annes Bandarra que escreveu as trovas antes de D. Sebastião nascer.


(imagem número três, roubada ao site do governo, com que dou lustro ao actual conceito de discurso; Leitão de Barros não faria melhor, se soubesse que as estrelas da catedral de Estrasburgo são sempre doze, desde que eles eram seis, até agora, que já são vinte e sete, isto é, quase duas dúzias e meia, porque lhe faltam ainda três)

Por isso, meu caro amigo que, ontem, me aconselhavas a ter cuidado, quero confessar-te que há por aí alguns portugueses da antiga fibra, do antes quebrar que torcer, que ainda têm espinha e não têm medo. Melhor: que têm o cuidado de não ter o cálculo dos cuidadosos, esses que procuram, sempre, estar na fila da frente para saudarem os vencedores, batendo palmas, batendo latas. Aprendi a dizer o não do homem livre que tem a coragem de estar em minoria. A liberdade nasce sempre da memória do sofrimento e só o entende quem souber ler esta frase de Pessoa: "vencer é ser vencido".