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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.7.07

Os que têm a faca e o queijo na mesa do orçamento, eles comem tudo e até dão facadas


Mesmo quando me refugio entre gaivotas, sargaço, polvos e alguns pequenos barcos que já não pescam, procurando olhar o mar dentro de mim, depois de espreitar as Berlengas lá ao fundo, não deixo de receber dramáticos testemunhos de uma administração pública vítima de chefias tão incompetentes que até se refugiam no habitual sucedâneo do autoritarismo indigente que, com uma mão semeia o medo e com a outra tenta acariciar com o favoritismo. Com efeito, havendo escassez de queijo e abundância de facas, eis que o habitual prato do dia, servido pela mesa do orçamento continua a ser o devorismo e a consequente empregomania.

Balbino, Vieira do Minho ou Charrua não são a regra, nem meras excepções que confirmam a dita branda. Não passam de simples bossas de um "iceberg" ainda não visível aos olhos da comunicação social, onde se torna patente um descarado neofeudalismo de sucessivos micro-autoritarismos subestatais e onde também não falta uma estranha aliança de ministros que não deixaram de ser gonçalvistas saneadores com pequenos objectos de lealdade bufante, herdeiros do inquisitorialismo e do pidismo salazarento.

Aliás, o modelo de ex-gonçalvistas prequianos aliados a espiões e serventuários da extrema-direita transformou-se num paradigma, onde não faltam ilustres chefes a decretar quais as pessoas ditas de confiança, qualificando como tais as que podem receber SMSs onde eles tentam influenciar decisões, com insinuações sobre terceiros a avaliar, depois de brincarem aos vetos de gaveta, sem qualquer fingimento de imparcialidade ou de aplicação do princípio da igualdade.

Porque para alguns ex-extrema-esquerda e ex-extrema-direita, ser estadista é ser salazarento ou estalinista, com muitas velas de cera ou a invocação latinória de algumas experiências discentes seminarentas e teológicas, que misturaravam sebentas de Ratzinger com manuais de ortodoxia de materialismo dialéctico muito bosch-mourense

Apenas me apetece imaginar o que seria o direito à indignação do presidente Mário Soares se alguns governantes de Cavaco tivessem balbinado, charruado ou correiacampisado. Ou então, o que seria o clamor do PS se, na Madeira, com tanto défice democrático, o Alberto João pisasse idênticos campos com correias de transmissão, pensando que ainda era secretário de estado do abastecimento de Vasco Gonçalves no patético V Governo Provisório, entre discursos de Almada e do Sabugo.

Ninguém diz a estas promessas de governação à inglesa que há muitas caricaturas de governação à turca, conforme a qualificação que outrora se deu a João Franco, quando este se transfigurou em coveiro da monarquia liberal, num ambiente de crepúsculo onde não faltaram juízes de instrução, retomando alçadas especiais de persiganga, onde ainda ninguém podia recorrer ao "outsourcing" de famosos causídicos que trabalham à peça e à avença.

Concordo com as observações que nos alertam para não confundirmos o toucinho com Mafoma, porque ainda não chegámos a qualquer compressão das liberdades públicas. Ninguém pode confundir uma maioria absoluta com uma ditadura da maioria, mas nem por isso podemos deixar de denunciar as pretensas interpretações de autênticas de lealdade feitas pelos vértices da hierarquia.

Ainda não chegámos àquela ditadura que se dizia nacional só porque se assumia como uma aliança da brutalidade da cavalariça com a santidade da sacristia, mas que há sinais de cavalgaduras e de hipocrisia da água benta, todos vemos, ouvimos e lemos. E não é pelo factos de suas excelâncias ministeriais passarem a ser excelsos meninos de coro da suprema presidência europeia que, ipso facto, ficam imunes ao vírus do despotismo ministerial. Os gémeos também são Europa.

Apenas digo que a pior das degenerescências democráticas não é a antidemocracia da ditadura, mas aquilo que Benjamin Constant qualificava como usurpação. Quando, mantendo-se a forma da democracia, se faz encher a dita de matéria antidemocrática. Porque o hábito não faz o monge e nem todo aquele profere as sagradas palavras do ritual pode entrar no reino do Estado de Direito. Quando os sacristães perdem o sentido dos gestos, a poluição usurpadora ameaça.

É um perigo transformar a complexa administração pública num concentracionarismo hierarquista, pleno de delatores, armados em olhos e ouvidos de uma qualquer excelência ministerial que se arrogue em fazer interpretações despachantes que restringem o conceito de lealdade ao caricatural "yes, minister". Pior ainda, quando no curriculum do intérprete estão frescas as memórias de oficiosos saneamentos, naquele tempo em que o respectivo conceito de lealdade estava unidireccionado para os que mandaram fechar o jornal "República". O legado liberdadeiro do PS começa a estar ameaçado.

Contudo, maior é o perigo se tudo não passar de uma manobra intimidatória, visando a próxima campanha do PRACE, nomeadamente o levantamento dos funcionários disponíveis para serem indisponíveis ou passíveis para promoção por mérito. Ao menos, em ditadura, todos sabiam que os certificados de bom comportamento moral e civil, passados pelos presidentes das juntas, não passavam de atestados da tragicomédia. Agora, estas derivas autoritaristas, por enquanto, não passam de anedotas, mesmo que possam, depois, contratar ditadores à moda do Minho para as reciclar.

Por isso, aconselho que leiam a secção das memórias de José Hermano Saraiva publicada no último semanário "Sol", onde se revelam alguns episódios do manual dos inquisidores e bufos. Depois de muitos anos de silêncios e cumplicidades, saiu da nebulosa o perfil vérmico de uma certa sumidade que os socialistas elevaram a reciclado mor do salazarismo. Será que precisamos de esperar outros tantos anos para repararmos que outro "iceberg" nos vai evitando o urgente degelo anti-autoritário e antitotalitário?