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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.4.09

Entre nevoeiros do Minho, encenações de Felgueiras, electrodomésticos de Gondomar, charutos de Isaltino e discursos de Avelino


Nas presentes circunstâncias legais e prescritivas, os chamados praticantes da compra e venda de poder e influência não podem ser apanhados pelas malhas condenatórias do sistema jurídico que a actual classe política engenheirou. Daí que o sistema judicial corra o risco de se transformar no bode expiatório e que assim se pratique uma espécie de suicídio do regime. Por outras palavras, não chega regressarmos à proposta de Cravinho, ou alinharmos na tardia tentativa de Manela para criminalização do enriquecimento ilícito. Não bastam estes prognósticos depois do apito final e seria estúpido culparmos apenas alguns actores magistrais da administração da justiça em nome do povo que tão mau serviço têm prestado ao Estado de Direito.

As normas vigentes sobre a corrupção não conseguem enxergar um boi diante de um dos muitos palacetes das volutas prescritas. Porque tudo sempre foi lícito demais para estas consciências tranquilas de um devorismo desavergonhado que se vangloria em comícios quase permanentes às portas dos julgamentos que as absolvem. Porque, enquanto os ditos devoristas apresentam alegações de campanha eleitoral, importa observar que bastava aos actuais partidos e empresários passarem à ofensiva, constituindo uma espécie de auto-regulação anticorruptiva que libertasse o poder judicial deste quotidiano desprestígio. Por outras palavras, os partidos tinham que definir, à boa maneira das pessoas honradas, com quem é que não querem sentar-se à mesa, ou a quem é que não querem confiar as carteiras, ou de quem é que não querem receber empréstimos e donativos.

A velha atitude de Pôncio Pilatos, bem expressa por alguns altos hierarcas do regime na sua passagem pela comissão de inquérito parlamentar sobre o BPN, deveria levar a que ousássemos criticar algumas das pretensas vacas sagradas, por muito que nos custe perdermos algumas protecções e favores. Infelizmente, continuam a qualificar como doidinhos, os corajosos radicais livres que não subscrevem a carta de conduta a que a cobardia dominante dá o nome de moderação.

Não vou falar de Alberto Costa, da velha história de Macau que o curricularizou, ou da presença de um alto magistrado na festa que marcou a sua recente vitória eleitoral em Leiria. Também ouvi o ex-bastonário Pires de Lima. É bem mais grave repararmos nas circunstâncias que rodeiam o processo de Isaltino, para confirmarmos como os eleitorados estão doentes, caso não manifestarem repúdio pelos processos confessados de financiamento partidário em dinheiro fresco, à boa maneira dos volframeiros.

Porque se tudo continuar como dantes, entre nevoeiros do Minho, encenações de Felgueiras, electrodomésticos de Gondomar, charutos de Isaltino e discursos de Avelino, mesmo que o actual presidente da comissão de Bruxelas tenha elevado um deles à categoria ministerial, lá temos que recordar Proudhon sobre a origem da propriedade. Mesmo o actual ocupante do Palácio de Belém não pode deixar de rejeitar Manuel Dias Loureiro como paradigma de conselheiro de Estado. As criaturas não podem levar os criadores à putrefacção.

Chegou a hora dos altos hierarcas e partidocratas manifestarem sincero arrependimento pelo sistema que os tramou e nos continua a tramar. Chegou a hora de pedirem, com toda a humildade, perdão ao povo e à democracia. De outro modo, poderemos entrar no desespero de Jerónimo de Sousa, pedindo a nacionalização da banca, como se a estadualização fosse o remédio, esquecendo-nos que os países menos corruptos e mais eficazes no combate à corrupção são aqueles onde há mais priovatizações.

Entre nós, as pretensas solidariedades ocultas, que até instrumentalizam o bom nome de instituições morais e congregações, levaram a que alastrasse este situacionismo difuso e suspeitoso, onde uma das principais chaves de acesso ao poder, além da troca de favores, é o silêncio entre os habituais irmãos-inimigos do bloco central de interesses das privatizações soarentas e cavaqueiras, onde as amizades banco-burocráticas são patentes.

A honestidade não vem de cima para baixo, não vem deste enrodilhante manda quem pode, obedece quem deve, marcado pelo hierarquismo reverencial do estadualismo. Basta recordarmos como foi tanta a corrupção salazarenta quanto as das prévias sociedades abertas demoliberais da monarquia constitucional e da Primeira República. Essa ilusão de estadualismo antineoliberal não passa de mais um desses discursos de justificação que nos atira para a hipocrisia de certos colectivismos morais quase inquisitoriais, onde se julga que, por alguém se afirmar de esquerda é mais impoluto do que um adepto do liberalismo capitalista, esquecendo-nos que o mercantilismo estadualista do capitalismo de Estado e do comunismo burocrático do domínio de ninguém, onde a culpa morre sempre solteira, produziu resultados tão imorais quanto o capitalismo selvagem dos novos ricos, de faca na liga e almas de corsários, apesar dos colarinhos brancos.

PS: Adorei aquela da campanha eleitoral do PS para as europeias, sobre Barroso. Um passadista homem de pretérito futuro, como Soares, disse que o Zé Manel é uma figura do passado. Vital proclamou, em consonância, que os socialistas deveriam ter um candidato próprio. Hoje, a antiga camarada MRPP de Durão, Ana Gomes, emitiu pior emenda do que o soneto. Candidatou Guterres pela família socialista... e social-democrata. Manuel dos Santos, deputado PS, logo veio pôr água na fervura, dizendo que vai votar no social-democrata Barroso, contra os quixotescos que querem ocupar lugar nas parangonas dos jornais...