As frases que ontem escrevi sobre a reunião do G20 foram prognóstico antes do apito final do primeiro dos confrontos de um longo campeonato de procura de cruzeiro regulador para esta anarquia ordenada a que vamos chamando ordem mundial, minada por neofeudalismos que provocam, nos homens e nos povos que querem ser livres, vontade de revolta. Mesmo no plano meramente doméstico, quando é fácil concluirmos como as canalizações representativas da partidocracia estão enferrujadas, se ainda há alguns que acreditam nas fileiras decrépitas dos teóricos da revolução e outros que conseguem descobrir o inimigo num fantasma, a que chamam neoliberalismo e globalização, julgo que, pouco a pouco, apenas vai restando o espaço de respiração para a reflexão do penso, logo existo, desde que se pense pela própria cabeça, desde que se procure continuar a descoberta do necessário transcendente no situado da nossa existência.
A encruzilhada em que, mais uma vez, vivemos, onde os efeitos nefastos do Estado Espectáculo estão a atingir as próprias infra-estruturas do aparelho constitucional de administração da justiça em nome do povo, depois da desinstitucionalização levada a cabo no sistema de ensino público e na compressão das próprias forças armadas, com a Igreja entretida com preservativos e casamentos de homossexuais, é bem reveladora de uma sociedade desertificada, totalmente dependente do mero aparelho de poder, herdeiro do despotismo ministerial do absolutismo, que apenas se preocupa com o nível da sondajocracia e com as técnicas da propaganda e da manipulação do discurso de justificação do poder, a que chamam ideologia.
Convinha repararamos que a regeneração demoliberal, a que nos permitiu alguma diginidade institucional nestes dois últimos séculos, depois da humilhante invasão napoleónica, só foi possível porque houve, apesar de tudo, um partido dos becas, ou dos juristas, magistrados e advogados; um partido da tropa, funcionando a nacionalismo, mesmo quando derrubou ministros da guerra; um partido dos professores e das escolas; bem como forças morais capazes de recriação de valores e de arrependimentos, como têm sido a Igreja e a maçonaria, quando se libertaram dos condicionamentos congreganistas.
A crise que vivemos não é apenas da partidocracia e daquele falhanço da organização do trabalho nacional que impede a meritocracia da igualdade de oportunidades e a consequente justiça inteira: a da justiça comutativa, a da justiça social e a da justiça distributiva. Bastou ontem notarmos como no parlamento, a senhora ministra queria passar a palavra a um seu ajudante, tratando os deputados como meros adjuntos da governamentalização em curso, para que, eventualmente, se descesse de nível e aparecesse na bancada governamental uma qualquer directora regional de educação, orgulhosa dos milhares processos disciplinares em curso que dão vazão ao excedente de licenciados em direito que vamos produzindo e que se recutam em dependência, em clientelismo ou em favor de amiguismos.
Por outras palavras, o partido dos becas, ao desmagistralizar-se, ao ameaçar passar de "magis" a "minis", corre o risco de voltar a ter as alçadas que não obedecem à justiça, ao direito e à própria lei, transformando-se em meras bocas que pronunciam as palavras da portaria, do regulamento ou dos estatutos, mesmo que estes contrariem a lei, o direito e a justiça, onde as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados passam a ser interpretados autenticamente pelo despacho do senhor director ou do senhor presidente, conforme as conveniências. E haverá sempre falsos becas em carreirismo, ilustres jurisconsultos em avença e outros da mesma espécie de facturação que se submeterão ao princípio da chefatura do rebanho e dos machos dominantes. Não tardará, aliás, que, em certas zonas da nossa decadência, se usurpem funções que pertencem à reserva dos parlamentos, em nome do direito circular, segundo o qual enquanto o pau vai e vem folgam as costas.
Com efeito, tudo aquilo que aprendi de penalismo constitucional com professores como Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Costa Andrade e que vivi na advocacia e na relação com os Tribunais faz parte de uma nostalgia pelo sentido do Estado de Direito que parece não resistir à presente vaga de neopositivismo de uma hipocria de Estado de Legalidade, a tal que varia de modelo conforme os interesses dos gestores dos pequenos aparelhos de poder que têm soberania na mesa do orçamento.
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