a Sobre o tempo que passa: Da Arte de Maternar de Zuleide Duarte. Por Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.10.10

Da Arte de Maternar de Zuleide Duarte. Por Teresa Vieira



Revisitando o livro «Da Arte de Maternar» de Zuleide Duarte  - Doutora em Letras e Professora de Literaturas Lusófonas.




Existe todo um edifício por Zuleide construído para que este seu livro se erga no contar dos contos – inquestionavelmente chegados ao mundo das percepções maduras - e no objectivo que os leve a que deles se retirem as coincidências , muitas delas verificáveis no agrupar de realidades só aparentemente distintas, pois que entre todas a conotação de mundo é  l’opposition fondamentale.


Creio que Zuleide Duarte agrupa, conscientemente ou não, um conjunto de acontecimentos-sentires e doa-os à adivinhação de quem os lê, como prova de quem expõe uma visão até então oculta mas provocadora. Materna, Zuleide Duarte expõe presenças astrais como manifestas redes de afecto, propícias ao código corajoso exposto no conto «Não era daqui».


Todavia, quando leio « Náufragos» encontro uma deslocação de palavras que se quedam antes de uma hipotética erosão que seria, no meu entender, profícua. Dito de outro modo, eventualmente, aos caminhos incontáveis, sem espias, sem censuras, palavras do conto que me retém por ora, não seria por excesso, levar o leitor a uma ideia de maior viagem, de modo a que as suas interrogações o colocassem, sem receio, a admitir, o quanto  o  leitor se encontraria disposto ao seu próprio questionar face à expressão com que se finaliza este conto: «como no princípio».


Insisto que se descobre neste livro de Zuleide Duarte uma imensidão de impulsos, deliberadamente contidos, e que os mesmos são fonte de uma itinerante exploração interior que, de tão madura, pressupõe em quem os escreve que, quem os lê, compreenderá que tal contenção é fruto de uma comunidade nativa de saberes que sobrevive intacta à visita dos olhos das palavras com que se exprime.


 Atitude arrojada esta da sua escrita de maternar. 


Tenho para mim que a extrema explicação subjuga fatalmente o cerne do explicar. Fatalmente também o discurso excessivamente analítico adulterará ou destruirá a vitalidade do seu objecto. Neste caso, a Escritora sabe-o. Mais: tem pleno conhecimento da barbárie narrativa que um conto pode conter e daí o deitar mão ao refreamento que a palavra também sustém se sustida num  hífen de ar.


Jaci Bezerra, com quem partilho a noção precisa da capacidade de concisão vertida neste livro de contos, refere também, um corrosivo senso de humor de que o mesmo é titular.


Confesso que tenho para mim que o humor vivido na respeitabilidade do  mundo, exprime, seguramente, a assunção de uma culpa principal cujo amargo sorrir nos vai calafetando os dias em que as dores atordoam os
sentidos. Deste modo, convivo com o humor que Zuleide Duarte utiliza nesta sua escrita, pois deste humor faz parte uma outra arte: refiro-me à da clareza do discernir em coragem.


Pessoalmente, devo referir ainda o quanto o título do último conto deste  livro «Da Arte de Maternar» nos oferece um contrato de esperança de subtil limitação, pois, se esta rua fosse minha (...) por mais que apurasse o ouvido, não encontrava o fiu fiu nos sons que acudiam ao seu chamado.


M. Teresa B. Vieira
29.09.10