a Sobre o tempo que passa: Ramos Rosa. Por Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

26.9.10

Ramos Rosa. Por Teresa Vieira

Para Ramos Rosa


Descobrir e conhecer o princípio da palavra, é um dos confrontos de especificidade inconfundível que o Escritor sempre enfrenta.

A utilização da linguagem, nomeadamente, da linguagem escrita e não desatenta à denúncia de horizontes opados, constituiu uma luta franca de Ramos Rosa à vigilância no acto de leitura do próprio acontecer.

Sempre a ressonância interior da sua escrita também visou romper o nanismo da criatividade, esse mesmo que corresponde ao homem-valor-desaparecido, e à secagem do ar que lhe é destinado por direito.

Assim, entendi a força de Ramos Rosa numa escrita que cria sempre pontes entre o homem e a sua clarificação, fermento bastante à implacável decadência de uma qualquer verdade.

Creio que os nossos dias ignoram que o mundo faz-se sonho, e sonhar faz-se mundo, como escreveu Novalis, e, ignora-se, inclusive, a inquietude do homem, tentando cessar-lhe o mosto das insensatas paixões: aquelas que são trilhos fortes e flagrantes e independentes, aquelas cuja ideia só por si age em nós.
Assistimos a tempos em que se esvai a linguagem legítima, portadora de identidades e de sentires, de tal modo que se ignora a fantástica utopia da palavra.

É então chegado o momento de recorrer mais uma e outra vez a Ramos Rosa: à sua bela e certeira palavra-flecha. E nunca é excesso recorrer à sensação do Ser saboreado.

A linguagem é uma das medidas pela qual sobressaem os homens; constitui um domínio antiquíssimo na arte da transmissão das coisas; exprime a cultura íntima à própria pátria-mãe; cria fortíssimos laços de compreensão planetária; arrasta em si a obstinação de exprimir o inexprimível; insinua-se às essências primeiras e aos fundamentos últimos; seduz em todos os limiares...

Devo dizer que receio, receio muito que os pantanosos vazios dos homens e nos quais ensaiam o exercício de supostas competências comunicacionais, obscureçam, o quanto são eles próprios os bárbaros e sua única periferia.

Em rigor, o século XXI lançou a dúvida sobre os garantes da esperança, bem como a credibilidade dos tempos do futuro, mas a conquista de adventos de novas eras, de novos saberes insubmissos, residirá em princípios de palavra que não param de datar com força-luz a interpretação dos alertas já que

       “ Com minuciosa febre
         alguém traça na folha
         a sibilina trama
         de um meticuloso desastre”
                               RAMOS ROSA       

Às vezes não é clara
A leitura da realidade.
Escapa-nos o poema
Que ficou na fila
Do ninguém sabe.
No entretanto
Também se escrevem
Magros sucedâneos
Atordoados.
Mas não basta dizer um sentir
Com um outro nome:
 
Há que registar se o excesso não foi nosso.
Há que registar o que leram certas lentes
De quem olhou para o mundo e seu revés.
 
Às vezes, um homem consegue ser a palavra
Entre a terra e a terra
E abrir uma porta.

                    
                               TERESA VIEIRA

Lisboa, 1 de Outubro 2007