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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

18.4.11

Do mal, o menos. Vida nova, precisa-se!



Os fraccionários da cidade, os que nem sequer têm dimensão de dissidentes, voltaram a ser os velhos censores da república romana. Não dos que fixam a lista dos cidadãos, mas dos que estabelecem a lista parlamentar da classe política, distrito a distrito, onde metem meia dúzia de independentes, as cerejas que aparecem no bolo do costume. Ontem não foi domingo de ramos, foi domingo de listas!

O problema é que não podemos chegar ao todo directamente, em encontros imediatos de um só ou da parcela que o apoia com a divindade da república. Cada um e cada parte só vê o todo do seu lugar, da sua perspectiva. Daí que o essencial sejam os lugares comuns, através dos quais podemos dialogar.

A multiplicidade pode levar ao uno e é da concórdia dos cânones discordantes que pode nascer a harmonia. Importa, pois, eliminar a atracção absolutista e centralista nas actuais fracções. O que está em baixo é o que vai, depois, reproduzir-se em cima. Logo, o pior não está no dogma, mas antes no temperamento dogmático.

Por outras palavras, o poder não está no parlamento nem nos deputados. Está nos directórios partidários que o definem e os escolhem. Lenine chamava à coisa centralismo partidário. Coisa equivalente ao modelo weberiano da era pré-racionalismo normativo. Os fiéis continuam a ter o primado sobre os competentes. É a chamada legitimidade feudal, face aos fragmentários chefes de bandos.

Até Seguro é parte profunda do aparelho. Pode não ser coincidente com o que ocupa o centro. Mas é aparelho. E ainda bem.

O PS ficou na defensiva. A novidade dos cabeças de listas coincide com o ministerialismo, os respectivos ajudantes e um importante director-geral. A marca de água do situacionismo vigente equivale ao carisma. Com um pequeno toque de Comte, a "révolution d'en haut". A clarificação pode não ser lá muito luminosa, mas quanto mais baço, mais propaganda.

Vamos ser francos: a soma das listas PS, PSD, CDS, PCP e BE, em termos de meritocracia, fica inferior ao simples abaixo assinado dos notáveis, os chamados 47, da democracia antiga. Por outras palavras, mesmo as elites do situacionismo não foram convidadas, ou recusaram. Vou mais pela primeira alternativa.

A partidocracia continua a ter medo de cometer erros. E não foi apenas o reflexo condicionado Nobre. Os partidos já reconheceram a autoclausura reprodutiva. E temem as negas. Por isso se refugiam no conservadorismo do que está. E sabem, experimentalmente falando, que os investimentos se farão mais na aposta dos novos governantes. Parlamento aproxima-se do solar dos barrigas de 1895. Falta uma Segunda Câmara.

Basílio Horta como cabeça de lista do PS, confirma-se. Uma justa homenagem a uma certa alta da primavera marcelista. Uma anterior aposta do PS, tanto através da candidatura autárquica do ministro das corporações Silva Pinto, como pelo recurso a Veiga Simão. Para além da colaboração dada pelo antigo secretário-geral do CDS a Sousa Franco, a antiga e justa amizade com Ferro Rodrigues.

A engenharia das listas dos candidatos ao arco da governação mostra menos renovação do que continuidade. Nobre reconheceu ter causado celeuma e assumiu erros. Para poder comunicar a mensagem alegórica do carro atolado, com muitos treinadores de bancada dando palpites. Permitiu que os críticos laranjas considerassem ultrapassado o equívoco. E reafirmou a identidade de esquerda. Continua no jogo, não foi eliminado.

Sócrates não fez purgas internas. Alegristas, soaristas, guterristas, ferristas e seguros perceberam que Sócrates pode passar, mas o PS tem de continuar. Até no eventual governo gestor das condições que os credores nos impuserem. Apesar de tudo, é boa notícia para a democracia.

Entre o erro plenamente assumido por Fernando Nobre e o erro que podemos cometer na negociação política com os credores, prefiro que não se cometa o segundo. E bem gostaria que o PCP mudasse o discurso silogístico, impondo as suas condições para adesão a um acordo de regime. Nem que seja um acordo quanto aos limites do desacordo.

Apesar de tudo, prefiro o, do mal o menos. Não gostaria que este regime ardesse antes do Verão. Prefiro que ele ainda tente a regeneração a partir de dentro. E que o governo saído das próximas eleições possa refundar o regime. Preferia que fosse através do estilo dos governos provisórios que fundaram a democracia vigente. Às vezes, o povo é sábio e pode ser que as próximas eleições sejam um golpe de Estado sem efusão de sangue, impondo que o partido vencedor recorra a uma aliança nos quadros do arco dito da governação, menos por imposição dos credores e mais por vontade nacional.

Até o PCP deveria entrar no arco constitucional, numa espécie de acordo de regime, onde se fixariam, pelo menos, os limites do desacordo. Estou convencido que o PS, mesmo que o não diga, já entrou em era pós-socrática. Tal como o PSD fugiu da tentação de restaurar uma espécie de cavaquismo sem Cavaco. Os ismos da velha personalização do poder devem dar lugar a uma verdadeira institucionalização do poder. No governo, no parlamento e na presidência. Pode ser o começo da vida nova*.

*A proposta de vida nova, nascida do grupo dos ditos vencidos da vida. Julgo que eles não deveriam perder desta vez. Uma homenagem a António Cândido e a Joaquim Pedro de Oliveira Martins, os verdadeiros fundadores de uma politologia com tradições portuguesas, também ainda por cumprir.