a Sobre o tempo que passa: Chove metano lá para os lados de Titã

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.9.05

Chove metano lá para os lados de Titã



Chove metano lá para os lados de Titã, diz a sonda que somos, nesta indiscreta viagem que todos vamos fazendo, em procura do que ainda não sabemos. Não chove chuva nessa Lua a que não chegámos. Nem sequer aqui. E, de repente, na viagem que me dá esta procura, onde me espero, me respiro e me caminho, sei que não sou a semente que vou sonhando.

Sou pequeno grão de uma bem maior corrente, um simples pedaço daquela semente a que chamam alma, esse pedaço de transcendente que temos a ilusão de transportar. Como se a vida que vivêssemos, alguém a pudesse, ao viver, pensar. Como se o movimento se pudesse parar, olhando-o de cima para o sofrer por dentro.

Mas, à vezes, no verso onde me voo, há sinal de asa que trespassa a nuvem que proíbe, este resto de fogo que nos criou, esta divina semelhança de quem, preso no chão, procura chegar-se à imagem das estrelas. Estes muitos sinais de mãos que vão moldando o informe barro que me sustém. Este sinal do sonho, donde vim, para onde vou, este excesso de procura que me dispersa pelos pedaços de um tempo de que sou parte. O tempo de quem sou e para onde voo.



A vida é o que não sabemos, tempo todo por cumprir, que Deus nos deu em ser. E sei que sabemos que o não sabermos é o máximo de saber a que podemos aceder. Somos, afinal, simples parcela de um poder ser. Onde quem sou será quem fui e quem hei-de ser, quando eu puder voltar a ser o sinal do sítio para onde vou.

De quantas sementes é feito um livro, de quantas folhas, em tentativa, se constrói uma só página impressa? De quantas lágrimas contidas se faz a dor de uma alegria?

Sim, eu sei que há uma terra ao longe, onde me guardei, onde quem somos se perdeu de nós, nessa voz da prometida espera que não chegou ainda, porque notaste os dias em que cheguei sem estar, quando mais longe me procurava, por entre as névoas que as tardes sem fim me davam.




E aqui estou, neste inquieto desassossego da solidão, onde o bafo do além me desalinha, assim sentado na mesa informe de um café suburbano, numa mesa que podia ser mesmo de madeira, num sítio onde até podia haver uma tertúlia aberta a uma rua que me fosse dar a uma qualquer praça do pensamento. Que não este sítio que vende sandes a fingir que são almoço e onde não há gente que tenha tempo para, perdendo tempo, ganhar seu tempo.

Porque até quem penso que sou talvez não seja eu mesmo, mas destroços de um passado por cumprir, quando, correndo à procura do que não achei, larguei o sonho de que ainda me não livrei. Sou o sítio para onde vou e só quando sonho me consigo sobrar em verso.