a Sobre o tempo que passa: Quem quer que viesse à rede tinha que ser "fish"...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.12.05

Quem quer que viesse à rede tinha que ser "fish"...


Pinturas roubadas a Jorge Cabezas

Mais uma vez me pediram, do semanário "O Independente" que comentasse o debate entre Soares e Cavaco:

O grande confronto histórico entre o “acho que não” e o “acho que sim”, onde Soares não perdeu na economia e Cavaco não perdeu na macropolítica, visava a conquista do tal um milhão de flutuantes que ora votam no PS, ora optam pelo PSD, dando lastro àquilo a que chamam estabilidade, a âncora social deste centrão mole e difuse que nos faz um país de reformados e de aposentadorias, marcado por regras do jogo de que se aproveita o grupo que parte e reparte, ficando sempre com a melhor parte .

De um lado a austeridade discursiva do mito da mercearia ordenadamente salvífica, dita social-democracia, filiada nos conservadores europeus, e, do outro, o avozinho porreiraço que clamando por socialismo não incomoda os donos do poder, dado que tanto vai a Porto Alegre como a Davos.



Porque, entre os dois passados, quem quer que venha à rede será sempre “fish”, apesar de um ameaçar com uma década de presença tutelar e outro, com um mero interregno de um lustro, enquanto capítulo final de umas gloriosas memórias. Em qualquer dos casos, os dois são os irmãos-inimigos que coabitaram nesta casa comum entre 1985 e 1995, num país que passou, de cabeça de um império colonial uno, indivisível, mas com pés de barro, a simples potência secundária da balança da Europa.

Paradoxalmente, era o primeiro confronto directo entre duas personalidades que só se tinham defrontado através de procuradores, em eleições legislativas e presidenciais, com Soares no seu último combate histórico, depois de uma sucessão de derrotas políticas próprias e da família, desde que Mário não ascendeu a presidente do Parlamento Europeu e o filho João perdeu em Lisboa, Sintra e na liderança do PS, sempre em regime de bela solidariedade de clã.



Ficará para sempre a simpatia demonstrada pelo velho combatente, sempre em activo revisionismo histórico, contra a agilidade narcísica de um menos velho, que não mais novo, também em regime de autobiografia, à procura do carimbo de humanista, mas com os dois a confundirem as meras escolhas eleitorais de uma conjuntura com um “julgamento” moral e da história, face a um povão talvez pouco preocupado em que eles explicassem as respectivas ideias e descrevessem as histórias de vida. Porque todos conhecem os detalhes das respectivas telenovelas, desde o tempo da televisão a preto e branco.



Pontos Positivos:


Aníbal Cavaco Silva

Táctica flexível, usada por certas artes marciais que, aproveitando a inércia das circunstâncias favoráveis, deixa o adversário desferir uma avalanche de ataques, aguentando os golpes, apenas para o contendor perder as forças e assim ser reconhecido como um superior, nesse “tenho de me conter para não ser deselegante”.

Conseguiu mostrar emoção e revelou alguma humildade quando não disse que podia saber mais do que Soares, dando assim a entender que este era um “fala-barato”, mas abusando da retórica dos “slogans” propagandísticos, do tipo “sou um social-democrata preocupado com os desfavorecidos”

Mário Soares:

Estratégia firme, embora com alguma petulância, visando fazer uma adequada teoria geral do poder do Presidente, baseada na experiência e no bom senso e visando aquilo que definiu como a concórdia nacional e a não divisão dos portugueses, em momentos de anteriores crises financeiras, sociais e políticas.

Conseguiu ser sublime na arte da memória e das grandes sínteses históricas do nosso passado recente, demonstrando, pela recuperação dos afectos conseguida, candidatou-se a arquivista-mor do reino, tanto por ser o grão-mestre dos pacholas conversadores, como o grande lutador que tem a coragem de, perante a ameaça de naufrágio, fazer, das fraquezas, forças




Pontos Negativos

Aníbal Cavaco Silva:

Continuou a ter alguma confusão quanto ao perfil dos poderes presidenciais, nomeadamente quanto a políticas económicas e de concertação social, tentando mostrar que era bom aluno de direito constitucional, com a constante citação de mestres da arte, apoiantes do soarismo.

A agilidade mental demonstrada não conseguiu disfarçar o narcisismo e o exagero de “marketing” quanto à preparação do debate, onde, em vários momentos se assumiu como uma espécie de “action man” em ritmo de “picareta falante”, na linha de Guterres e de Sócrates.

Mário Soares:

Foi longe demais na tentativa de caracterização caracteriológica do adversário, assumindo o debate como uma espécie de passagem do Rubicão, depois da qual declararia o “vi, vim e venci”, mas onde poderá ter apenas deambulado por uma espécie de ponte do tédio, sobre as águas do Lethes.

Na segunda parte do debate, perdeu o controlo do meio campo e continuou agarrado à grande área do adversário, ficando várias vezes em “off side”, com algum mau-gosto em certas piruetas violadoras das regras do jogo.