Viagem aos traseiros da "Révolution" de uma França que é pretérito, numa Europa sem presente
Também eu estava em Paris, quando os filhos e afilhados do Mai 68 fizeram uma viagem retro à bastonada da révolution, numa altura em que metade dos ministros da Europa são oriundos desses soixante-huitards, antes de se terem aberto lojas de santinhos que misturam, no mesmo altar, Iemanjá, Che Guevara, Gandhi e os pastorinhos de Fátima. Assisti, por dentro da própria rua, ao tradicional jogo do gato e do rato, na luta contra o CPE, Villepin e Sarko. E como pai de jovens licenciados lusitanos que vivem de recibos verdes, esbocei um sorriso, até porque ainda não cedi à tentação de meter cunha a um desses "amis" maoístas e trotskistas de outrora que agora são engenheiros deste Estado europeu a que chegámos, para fazer o habitual curto-circuito à falta de justiça que vai matando a "liberté, égalité et fraternité".
Paris continua desequilibradamente viva entre o imaginário libertino do capitalismo selvagem e o proteccionista coitadinho de um État-Providence que obriga os africanos a fazer fila à procura da senha para consulta diante do edifício dos "Médécins du Monde". É por isso que hoje, quem quiser estudar a coisa vai ao Collège de France e pode comparar em video a última conferência do especialista na coisa, o Professor Rosanvallon, antes da academia ter sido invadida pelos vizinhos estudantes da Sorbonne, que aproveitaram o vazio de vigilância da "gendarmerie" sobre o prédio ao lado, para ensaiarem as últimas técnicas de pedrada contra os representantes da globalização, aqui na rue des Écoles.
Os filhos dos pretensos pacifistas de ontem mostram como sem o freio da profiláctica policial por todo o lado semeariam carros incendiados, nesta Paris cujas colunas míticas são "les révolutions", com muitas desordens e repressões que não levaram a nenhum lado, mas que continuam a ser escritas pelos revolucionários frustrados transformados em historiadores oficiosos, depois de instalados no calor dos seus "bâtiments" ultra-burgueses, onde maoístas e trotskistas se pintam hoje de eco-socialistas e radicais de extrema-esquerda, não compreendendo que há quem tenha estado sempre do outro lado, contra Laval e Vichy e a favor de Aron, Camus e Malraux, desfilando nos Campos Elíseos, em 1968 a favor de De Gaulle.
Por mim, que sempre desconfiei dessa floresta de equívocos a que dão o nome de revolução e que conheço as técnicas das guerras de multidões, continuo a notar que qualquer cobarde, no seu seguidismo, pode ser arrastado pela torrente das massas, quando julga que se transfigura em herói, só porque repete o slogan e a "palavra de ordem" que os conspiradores de manual previamente ensaiaram. Mas reparo que alguns destes artistas secundários e figurantes se sentam hoje nos cadeirões ministeriais e paralamentares da dita Europa, perdidos que foram os sonhos juvenis daquilo que qualificaram como militância. Hoje dão ordens aos mesmos agentes repressores que ontem denunciaram ou são os principais beneficiários dos ditos aparelhos movidos a violência e a ideologia burguesas. Isto é, entre ontem e hoje, há o mesmo deserto de ideias e a mesma falta de espinha.
A Europa não passa de uma velha praça onde estão abertas muitas pensões frequentadas por estudantes Erasmus, cantores de ópera do Paquistão, canalizadores uzbeques e outros que tais que agora ameaçam tirar o emprego ao proletariado universitário dos arrondissements. Mas em Le Parisien, que todos lêem, não há uma só primeira página sobre a crise do Mundo que vai além do Hexágono, demonstrando como a União Europeia, nas suas intimidades nacionais, continua apenas a discutir os pequenos dramas da vizinhança, neste glocalismo provinciano e egoísta em que nos enrodilhamos.
A França é cada vez mais um pretérito de uma Europa sem presente. De um bairro antigo do defunto Euromundo, onde temos vergonha de o ter sido, só porque continuamos a viver uma espécie de guerra civil fria, onde todos vamos definhando. É a simples memória de uma pretensa grandeza que faz desta Europa dos pequeninos um tempo que já não há. Por mim, português antigo, mais próximo da geração da "valise de charton" que dos exilados da Boulevard Haussman que tratavam por tu mon ami Mitterrand, apenas sei que nunca tivemos Vichy, colaboracionistas e ocupação alemã. E nada tenho a ver com essas culpas alienígenas, porque já me bastam os traumas das minhas próprias guerras coloniais, para desfiar meu rosário de vergonhas. Apenas sei que também em França as muitas guerras coloniais fizeram da nação uma ideia sem raça.
Já por aqui aconteceu dessa moda que passa de moda, onde só é novo aquilo que se pode esquecer. Já por aqui houve a ilusão das vanguardas e da revolução, com algum terror, muito desespero e imenso fingimento. Porque a revolução deu em guilhotina e em invasão e só se aguentou com os massacres da Vendeia, acabando por chamar-se Napoleão, coisa que, em português, se foi traduzindo por Junot, Soult e Massena, com traidores, Ponte das Barcas, protector inglês e mudança da capital para o Rio de Janeiro.
Agora podemos passear no bairro do Marais entre rabinos de barbicha, bandeiras arco-íris e estrelas de David, fazendo bric-a-brac do sagrado, antes de voltarmos para o doce lar dos brandos costumes, percorrendo a fumarada destes traseiros da globalização, que são a fealdade típica das megacidades produzidas pelas teias de um tecnocracia possidente que vai gaguejando o pensamento único derramado pela secção intelectual da República Imperial que resta.
Afinal, o radical-chic já não rima com Paris, mas eu continuo a ser francês, apesar de desconfiar cada vez mais dos preconceitos de esquerda e dos fantasmas de direita das nossas classes A e B que vão reduzindo o mundo aos quintais dos bares, ginásios e restaurantes frequentados pelos nossos capitaleiros de sucesso e que acabam por inibir os processos criativos e as próprias vocações literárias e artísticas, sobretudo quando o abstracto "ninguém" dos pretensos críticos se transforma num sindicato das citações mútuas, deste minimalismo pós-moderno das letras e artes do novo cavaquistão.
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