a Sobre o tempo que passa: Vale mais experimentá-lo do que jugá-lo, mas julgue-o quem não puder experimentá-lo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.12.06

Vale mais experimentá-lo do que jugá-lo, mas julgue-o quem não puder experimentá-lo




O amigo José Rodrigues Coelho interroga-se sobre a minha monarquice e sobre a posição que, desde sempre, adoptei sobre a IVG, talvez por estar desatento ao que, constantemente, aqui, neste blogue, tenho proclamado sobre tais matérias. Apenas o quero esclarecer que ambas as posturas vêm mais daquilo que tenho experimentado na vida que daquilo que tenho julgado, sem o poder experimentar. Sou monárquico porque meus avoengos foram fiéis ao senhor D. Manuel II, um como jardineiro, servidor da casa real, outro como colchoeiro, saneado do emprego por não querer ser adesivo em 1910. Isto é, sou aquilo que gosto de proclamar que sou contra os fantasmas e preconceitos dominantes e até mesmo contra a imagem dos monárquicos que continuam dominantes.

Em segundo lugar, ainda por razões familiares, tenho orgulho da aristocracia que recebi de meu falecido pai. Que começou, aos onze anos de idade, por servir copos de vinho numa taberna da praça velha de Coimbra, passou, aos catorze, para empregado do Café Brasileira, na Calçada da mesma cidade, e entrou, aos dezoito, como contínuo numa instituição pública que hoje é o maior banco português. Foi ele que me ensinou a ter que viver como penso sem pensar como vivo, porque a raiz essencial de qualquer comunidade política é precisamente a ciência dos actos dos homens como indivíduos, a chamada moral, segundo a qual a principal regra social é a autonomia, aquela regra que cada um cria para si, e para os seus, e que está sujeita ao simples tribunal da consciência e à sanção do remorso, tendo como principal constituição o exemplo de vida que cada um deve inspirar. A tal coisa a que Kant chamou imperativo categórico, a tal razão prática que pode transformar as nossas condutas numa espécie de lei universal.

É por isso que considero os problemas da IVG como coisas que deviam pertencer à esfera da moral, das tais questões de consciência, onde, na prática, a teoria não deve ser outra. Logo, obedecendo aos ensinamentos do meu pai, julgo que não devemos trazer para a praça pública aquilo que, para ser eficaz, não deve sair do espaço da intimidade familiar e, muito menos, passar para os adros da igreja ou para o largo do pelourinho. Como jurista que continuo a ser, embora dessa ciência não faça modo de vida, até diria que a melhor sociedade é aquela onde todas as regras são espontaneamente cumpridas, nomeadamente aquela onde as tais questões de consciência não precisam do chanfalho da guarda, dos manuais e códigos de processo penal e das grades prisionais.

Sujeitar uma mulher aos erros e negocismos dos serviços públicos e privados de saúde, nomeadamente ao aborto clandestino, quando não tem saber, ou dinheiro, para dar um salto a outras partes da Europa, ou sujeitá-la ao medo de uma repressão estadual, é insultar o direito à vida e não transformar a questão naquilo que devia ser, num assunto de homem, mulher, irmãos, avós e restante espaço da intimidade familiar. E quando vejo a Igreja solicitar ao Estado que use da respectiva repressão para o cumprimento de certos valores que não são maioritariamente assumidos pela nossa sociedade, tal como já não são estadualmente protegidos na maior parte do espaço civilizacional em que nos integramos, jugo que estamos a desperdiçar recursos no verdadeiro e necessário combate pela defesa da dignidade da pessoa humana e pelo reforço da família.

Sou tão monárquico que até defendo, sobre essa matéria, a aplicação na república portuguesa das normas vigentes nas actuais monarquias da Europa. Apenas sugiro que líderes políticos partidários e estaduais façam o que praticou o rei Balduíno da Bélgica: abdiquem durante umas horas para não influenciarem a liberdade dos povos. Aliás, bastaria estudarmos alguns capítulos das velhas lições de medicina legal, para percebermos como as nossas comunidades rurais ancestrais tratavam liberalmente da matéria, antes da chegada dos urbanóides e capitaleiros do Estado higienista e do moralismo hipócrita.