a Sobre o tempo que passa: Entre vanguardas e correias de transmissão...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.1.07

Entre vanguardas e correias de transmissão...



Dos milhões os portugueses que restam e que podem ser cidadãos activos no âmbito dos mecanismos da actual democracia representativa, constitucionalmente vigiada, o principal problema político está nas canalizações participativas e nos encenadores do palco mediático que censuram as notícias e estabelecem a agenda política. Os sucessivos filtros de controlo que se estabelecem entre o que foi a maioria silenciosa, ou silenciada, e a inevitável minoria gestora dos aparelhos de poder, são às vezes denunciados por meia dúzia de acasos que fazem com que os bestiais passem a bestas e os salvadores a meros salvados, expostos na tralha do ferro velho.

Vem isto a propósito de hoje ter decidido comprar, pela primeira vez desde o Verão, um dos semanários de fim-de-semana que resultaram da cisão que ocorreu no herdeiro do velho "Expresso". Logo cheguei à conclusão que, afinal, de um lado ficou o partido do estilo SIC e, do outro, o partido do estilo TVI, essas duas fundamentais vozes do bloquinho centraleiro que nos desgoverna, todos os dias, entre o PS, o PSD e as tias apoiantes do modelo terceirista de Paulo Portas. Até posso acrescentar que os mesmos canalizadores da opinião pública já ameaçam controlar a própria blogosfera, assumindo-se como seleccionadores madailizantes dos conceitos de esquerda e de direita.

Uns dizem que a "operação Furacão" deu às vilas Diogo, outros que continua firme a operação dos apitos anti-corrupção desportiva, Portas está contra a Morgado, o pai de um secretário de Estado dos estrangeiros vai para a Banca que foi do Jacques Attali, deixando-nos órfãos no combate à corrupção e há quarenta docentes de direito, transformados todos em catedráticos, que foram declarados detentores do certificado de bom comportamento moral e civil pela hierarquia papista.

Tal como há cerca de cem anos, para parafrasear Pessoa, em Portugal há apenas cinco por cento de monárquicos e cinco por cento de republicanos. Os restantes noventa por cento dependem das tais canalizações participativas e dos encenadores do palco mediático que censuram as notícias e estabelecem a agenda política. Antigamente chamavam, aos activistas, a vanguarda e até se teorizavam os conceitos de correias de transmissão. Hoje, a distância que vai do país das realidades ao país oficial já não se mede pelo conceito de ministro ou de funcionário público, mas antes pelos novos elementos de compra do poder, onde públicos e privados se confundem no regabofe.

Este é o país onde o livro que continua no "top" de vendas é o tal "less" do "Eu, Carolina", a nova Joana d'Arc destes tempos de regresso ao "Marquês da Bacalhoa". Este é o país das missas de um qualquer encarreirado do "Grupo Millenium" feito director-geral. Por isso, saúdo a coragem poética de Manuel Alegre, esse filho de um monárquico sem rei e de uma republicana sem República, quando diz que começa a andar tudo a reboque de uma deriva presidencialista, marcada pela nebulosa de todos estarmos de acordo com uma bissectriz de interpretações cabalísticas.

Entre sobreendividados e enfuracados, há dezenas de milhares de contas bancárias congeladas pelo fisco, neste processo de caloteiragem em curso, onde há transmissões em directo de penhora de antigos heróis mediáticos, enquanto discutimos se os embriões são pessoas humanas, como nega um bispo, com algum bom senso, contrariando a propaganda clerical que continua a insinuar que quem diz sim ao referendo é um adepto do aborto, enquanto o sargento de Torres Novas volta a colocar o problema das leis injustas e dos tribunais que, de silogismo em silogismo, não conseguem garantir aquela clássica hierarquia que põe, acima das leis positivas, tanto o direito como a justiça.

Anda tudo trocado. A Igreja e as igrejas pedem que os tribunais, os polícias e as cadeias transformem as ordens normativas da moral e da religião em zonas protegidas pela coacção estadual, assim negando a autonomia da moral, enquanto ciência dos actos dos homens como indivíduos e o transcendente da religião que não pode continuar a situar-se no chanfalho do relaxamento ao braço secular. Os caloteiros e os corruptos brincam às dilações processuais e às evasões fiscais, com muitos garantismos hipócritas e dezenas de requerimentos ao abrigo do código do procedimento administrativo, para sucesso do emprego dos licenciados em leis e cânones, sem direito nem justiça . E a secção manhosa do povinho que acreditou nas patranhas do bacalhau a pataco e do enquanto o pau vai e vem folgam as costas ainda não se consciencializou que nesta quinta dos animais falantes somos todos iguais, mas há sempre alguns mais iguais do que outros. Continua a não haver moralidade e, depois desta interrupção, nem todos os mexilhões vão comer. O programa do sistema vai seguir dentro de momentos e é melhor continuar a jogar no Euromilhões.