a Sobre o tempo que passa: O mesmo aparelho de poder tem capacidade para servir ideologias diferentes sem alterar a sua pirâmide

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.1.07

O mesmo aparelho de poder tem capacidade para servir ideologias diferentes sem alterar a sua pirâmide





Hoje vou navegar em abstracções, farto de pormenores. Porque sempre estive próximo daquela moral que manda agir sem dependência dos resultados, contra aquelas regras do homem de sucesso, onde se admite que alguém, para salvar a alma, pode fazer perder a cidade.

Porque, segundo Hannah Arendt, a questão, tal como Maquiavel a viu, não era se amava mais Deus do que o mundo, mas se seria capaz de amar mais o mundo do que a si próprio.



Com efeito, Maquiavel reconheceu a polivalência do poder, quando considerou que o mesmo aparelho tem capacidade para servir ideologias diferentes sem alterar a sua pirâmide ou quando descobriu haver regimes que praticam a alternância ideológica sem admitirem a circulação da sede do Poder.

Importa, contudo, sublinhar que Maquiavel não fez um tratado de moral nem doutrinou o que se deve fazer. Descreveu simplesmente o poder, isto é, o Príncipe e os seus procedimentos. Ele apenas veio dizer alto aquilo que todos, ou antes, muitos, particularmente os príncipes, diziam já em voz baixa, e, mais do que tudo, praticavam.



Basta recordar estas palavras do florentino sobre a existência de dois géneros de combate: um que se serve das leis, outro que se serve da força: o primeiro é próprio do homem, o segundo dos irracionais: mas porque o primeiro muitas vezesa não basta, convém recorrer ao segundo. A um príncipe é necessário, portanto, saber usar ou o animal ou o homem que estão dentro dele (... ) Estando, então, um príncipe necessitado de saber usar bem o animal, deve eleger como tal a raposa e o leão; porque o leão não se defende das armadilhas e a raposa não se defende dos lobos. Necessita, pois, de ser raposa para conhecer as armadilhas, e leão para amedrontar os lobos.

Segundo Jacques Maritain, o resultado prático do ensino de Maquiavel foi, para a consciência moderna, uma cisão profunda, uma irremediável separação entre a política e a moral, e, por conseguinte, uma ilusória, mas mortal, antinomia, entre aquilo a que chamamos idealismo (confundido erradamente com a moral) e aquilo a que chamam realismo (confundido erradamente com a política).

Continua e continuará, entretanto, a eterna dúvida de sabermos se, em política, os estados de violência não poderão ser tão ou mais violentos que os próprios actos de violência.

O mesmo Maritain tentou responder, salientando que uma política não maquiavélica é obrigada a não cometer o mal. Não é obrigada a fazer reinar a virtude por toda a parte(... ) Não é falta moral aceitar serviços duma mão suja quando esse é o único meio de assegurar o êxito duma empresa tão arriscada como uma campanha militar, porque a política é arte de escolher entre grandes inconvenientes.

Porque a opinião dominante, nem por dominar, deixa de ser conjuntural. E a ordem verdadeira não pode estar dependente da flutuação em torno do ideal conjuntural da sociedade. Porque tem de haver um padrão superior à opinião dominante, mesmo que esta seja uma justificável aliança dos mais débeis contra a injusta dominação dos mais fracos.

Há uma lei universal do justo e do injusto, um padrão que não serve apenas para aferir da validade do direito estabelecido, posto, positivo, mas algo de mais global, que também seria mais elevado que o ideal mutável da nossa sociedade, dado que há no homem qualquer coisa que não está sujeita à sua sociedade e por conseguinte que somos capazes, e portanto obrigados, a procurar um padrão que nos permita julgar o ideal da nossa sociedade ou de qualquer outra.

O padrão que talvez corresponda ao conceito socrático de natureza, a coisa na sua inteireza ou perfeição. Um padrão que até se não identifica com a ideia de ser bom aquilo que é antigo, dado que este tipo de natureza até é sempre mais antigo do que aquilo que foi estabelecido pelos fundadores de uma determinada comunidade, prendendo-se com a própria ordem eterna.

Neste sentido, o direito da razão será sempre equivalente à procura do melhor regime, contrariando certa tendência da modernidade, de extracção maquiavélica, que considerando a realização desse melhor regime como altamente improvável, tratou de baixar os níveis e de considerar que o melhor regime poderia ser realizado em qualquer parte.