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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.1.07

Eu, assumido terrorista e violador da constituição, me confesso...



O "JN" anuncia que Polícia Judiciária (PJ) está a seguir uma pista de dinheiros relacionados com suspeitas de financiamento partidário ilícito, na investigação do designado caso Câmara de Lisboa/Bragaparques, que esta semana originou mais de uma dezena de buscas. Por outras palavras, há célebres hierarcas lusitanos que se preparam para declarar, ao microfone a à cidade, que estão "de consciência tranquila", enquanto Pedro Santana Lopes se prepara para regressar em força ao palco das disputas cimeiras do respectivo partido, para não ficar atrás de Paulo Portas.

Noutro segmento das nossas angústias existenciais, nota-se que o treinador do FC Porto, Jesualdo Ferreira, disse ontem à noite que gostava de ver investigado o jogo com a União de Leiria, que o campeão nacional e líder da Liga portuguesa de futebol perdeu por 1-0. Vale-nos que a pátria, depois de ter Durão Barroso em Bruxelas, ficou ontem a saber que Gilberto Madaíl vai assumir um dos lugares do comité executivo da UEFA, assim se juntando a António Guterres, no próximo painel dos dez grandes portugueses, VIP, do actual universo dos cartões de crédito.



Entre os presentes dez mais está, de certeza, o maestro Paulo Macedo. Aliás, uma orquestra de flautas tocada pelas chefias dos impostos exibiu-se ontem no auditório da Faculdade de Medicina Dentária, em Lisboa. O director-geral dos Impostos, feito chefe da banda, até incentivou os funcionários da Administração Fiscal a actuarem “em equipa, tal como uma orquestra”. A motivação e o trabalho em equipa foi um dos temas fortes da cimeira do Fisco, que juntou ontem, na capital, cerca de 1300 funcionários.

Quanto à campanha do referendo, ela foi ontem declarada inútil, quando um ilustre constitucionalista da universidade concordatária e da universidade pública, mas pouco laico, considerou que a pergunta, como está elaborada, favorece a "liberalização" do aborto, algo que considera ser inconstitucional, até porque se a intenção fosse apenas despenalizar, nem seria necessário ir a referendo, já que nenhuma mulher está presa pela prática do aborto. Outro ilustre, do mesmo grau e qualidade, até acrescentou que "falar em liberalização é quase tão estranho como falar em terrorismo".



Por outras palavras, todos os defensores do "sim" ficaram a saber que, além de violarem a constituição, podem ser indiciados como militantes de organizações terroristas. Aliás, julgo que, na Europa, só Portugal, a Irlanda e a Polónia é que não têm terrorismos destes. Acresce que, ao considerar-se que a "validade" de uma tipificação penal se mede pela "eficácia" de uma certa "vigência", isto é, pelo número de presos condenados, estamos a assumir a perspectiva de Marques Mendes e a considerar que também é boa a lei existente sobre a corrupção, dado que raros são os líderes políticos cimeiros, regionais e autárquicos que estão presos e condenados. O Estado de Direito que se lixe com esta luminosa filosofia positivista do direito.

Sugiro que, para superarmos a crise, em vez de um referendo, se siga a técnica oficial de luta contra a evasão fiscal, convocando uma grande manifestação coral de professores de direito, magistrados e directores de prisão, através de uma mega- concertação social ao som de uma qualquer música celestial, tipo "Oh Elvas! Oh Elvas! Badajoz à vista!".



Por mim, de cilício torturante e prestes a ser declarado constitucionalmente terrorista, irei para outra, bem mais nebulosa, lá para os lados de Santa Catarina, olhando a barra do Tejo em bruma, à espera que regressem as manhãs de nevoeiro, para que não continue a subscrever Pessoa, sobre este "nem rei, nem lei, nem paz nem guerra...". Até porque, continuando o mestre, se houver um referendo entre a chefia republicana de Estado e a chefia monárquica, eu como realista que continuo a ser, terei de optar pela via republicana, mesmo que seja contrária às leis fundamentais do reino a que continuo a ser fiel, embora saiba que são apócrifas as Actas das Cortes de Lamego.