a Sobre o tempo que passa: Anomia: ou os governantes que parecem governados, os juízes que se sentem julgados, os professores que temem os discípulos e o diabo feito deus

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

24.1.07

Anomia: ou os governantes que parecem governados, os juízes que se sentem julgados, os professores que temem os discípulos e o diabo feito deus



Dizia ontem, a uma jornalista do "JN", ao ser interrogado sobre o presente debate sobre a IVG, que a coisa não estava serena, pois "criou-se uma confusão enorme entre a moral e o Direito" com "a interferência da religião na política", assim se reflectindo "o estado de anomia". O relato da breve conversa saiu hoje, embora os pouco habituados à terminologia durkheimiana possam ir ao dicionário confirmar que a anomia é essa situação social onde não existem mais leis ou regras ou, se existem, são confusas, contraditórias ou então ineficazes. Logo, se o grupo permanece não há mais qualquer solidariedade entre os indivíduos que perdem os sistemas de apoio e os pontos de referência.



Se alguém tivesse dúvidas sobre a questão, bastaria notar as parangonas de hoje: O Conselho Superior da Magistratura decidiu publicar na página de Internet do conselho toda a matéria de facto que foi dada como prova no caso do sargento Luís Gomes (1). A Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou que está a estudar a abertura de um inquérito sobre a alegada utilização pela CIA de aeroportos portugueses para o transporte ilegal de prisioneiros suspeitos de terrorismo (2). A PJ esteve nas instalações da Câmara Municipal de Lisboa a realizar buscas, no âmbito da troca de terrenos entre a autarquia e a Bragaparques e os inspectores recolheram vários caixotes de documentação e material informático (3). A Polícia Judiciária confiscou material informático na redacção do jornal desportivo on-line Sportugal (4). Um supremo reformador do Estado, máximo burocrata de uma instituição universitária, perante uma iniciativa criativa de um centro de investigação, que, no exercício da sua esfera de autonomia, solicitava que se enviasse um ofício a pedir o registo de um "logótipo", usou a forma do despacho para dizer que não assinava, porque nenhum dos outros centros, incluindo o dele, tinha até agora pedido coisa igual.



Anomia vem do francês anomie, proveniente, por sua vez, do grego anomia O mesmo que desordem, enquanto violação da lei. Termo cunhado por Durkheim para significar ruptura da solidariedade, sendo equivalente ao conceito marxista de alienação. Segundo aquele autor, tal acontece quando se dá uma mudança de normas sociais que priva o indivíduo dos pontos de referência necessários para a determinação dos objectivos da respectiva conduta. A quebra da solidariedade acontece sempre que há uma ruptura entre os desejos dos homens e a possibilidade dos mesmos serem satisfeitos de acordo com as leis existentes, o que leva à não integração do indivíduo na sociedade.



Mais anomia é o argumentário dos campanheiros do referendo. Uma partidária do "não", entre o "sim" e o "assim, não", procura a bissectriz catolaica e proclama: "Aqui todos estamos de acordo com a despenalização", porque "é preciso distinguir o erro da pessoa que o pratica", mas o voto "não" justifica-se como um sinal emitido à sociedade, impedindo que se "transforme o errado em certo". No mesmo sentido, outra senhora deputada da mesma área teológica também acrescenta: "é claro que não quero mulheres nos tribunais e a legislação deve ser alterada."



Ambas não querem "ver as mulheres objecto de devassas públicas nos tribunais". Ambas querem que continue em vigor uma lei que criminaliza uma conduta, para que os tribunais a não apliquem. Ambas querem o Deus e o Diabo. O não e o seu contrário. Ambas querem esta anomia crescente.



Basta reler as linhas de Platão sobre a degenerescência democrática, quando cada um deixa de cumprir a sua função: louvam e honram em particular e em público os governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes .

Do mesmo modo, surge o professor que teme os discípulos e o velho que quer parecer novo: o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em acções; ao passo que os velhos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários .




O antídoto proposto por Platão é o esforço filosófico, estético e poético. Era o aristocrata a antepor-se à ignorância e à incompetência dos políticos. Para evitar o aparecimento do protector que se transforma em tirano . Para evitar que o povo, ao tentar escapar ao fumo da escravatura de homens livres, não caia no fogo do domínio dos escravos da escravatura de escravos que é a tirania

Por isso, recordemos Sócrates e a distinção entre as leis da cidade e as leis não escritas estabelecidas pelos deuses e que viveriam na consciência dos homens, aquelas mesmas leis que Antígona reclama contra as ordens do tirano. Porque Sócrates defende o respeito pelas leis da cidade, dado que o bom cidadão deveria obedecer às próprias leis más, para não estimular os maus cidadãos a desrespeitar as leis boas.



Aliás, esta oposição entre as leis não escritas e as leis da cidade foi, de certa maneira, resolvida com o sacrifício do próprio Sócrates, em 399 a.C., ao aceitar a pena de morte injusta que a lei escrita da cidade lhe impôs, declarando: antes sofrer a injustiça, do que praticar a injustiça. Porque a partir dele, a polis passa a começar a existir no próprio interior do homem. Ou, como observa Fellice Battaglia, a polis e a lei que a comanda interiorizam-se e ascendem a um valor de vida insuperável . Isto é, o superior passa também a poder ser determinado a partir do interior de cada um.