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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.11.07

Esta coisa de ser vertebrado atrapalha muito num mundo de esqueletos no armário e consciências reduzidas a escória...


Por estas tascas e cafés de bairro, por onde passava o Eduardo Prado Coelho, restam dois ou três peregrinos da intelectualidade castífera e capitaleira, com que, de vez em quando, deparo na solidão das mesas, todos lendo pausadamente o jornal "Público", todos carregando o último livrinho encomendado a Londres ou a Paris, todos olhando o povo que vai aos balcões tomar a biquinha como uma multidão alienígena. Se alguns foram meus conhecidos dos bancos e bares das faculdades, com todos esses fazedores de vanguardas progressistas e reaccionárias, não me apetece conversar nem sequer saudar, até porque não estou minimamente interessado em aceder ao respectivo sindicato das citações mútuas e dos subsídios em circuito fechado, nomeadamente nos júris clandestinos das selecções avaliadoras.


Não faltam sequer os ilustres angariadores de patrocínios para seminários, "workshops" e conferências que, de uísque em punho, vão engenheirando a respectiva caça ao favor, trocando telemóveis da fauna bancária e empresarial que ainda acredita que assim se faz o marketing e a política de imagem. E tal como no anterior sindicato das citações mútuas são os ditos que emitem adjectivações sobre peritos que podem mobilizar para a procissão, sobretudo os que não requerem "cachet", mas apenas prendinhas da loja dos trezentos. Por mim, prefiro gerir meus pareceres sem cedência a esse grupo de amigos que cordialmente se odeiam, apoiando os que têm mérito, apenas em nome da justiça.


Por esta e por outras é que me apetece referir um "mail" que acabei de receber de mais um mal avaliado pela clandestinidade dos critérios do estadão: É bem feito para mim que, pela primeira vez, troquei o punho ao alto pela mão estendida! Esta coisa de ser vertebrado atrapalha muito num mundo de esqueletos no armário e consciências reduzidas a escória. Queria estar revoltado, mas estou apenas triste. É bem feito para mim que nunca torci e agora quebrei! ...É bem feito para mim que já me via no cume de uma meritocracia! "Volta lá para baixo e carrega o calhau montanha acima, Sísifo, que essa é a tua sina"!!
De facto, eu bem tinha referido ao dito que a única via para a oleosidade estava em duas ou três cartas de recomendação da partidocracia, do mediático e da consultadoria, desses a quem a engenharia carreirística dos seleccionadores supõe que, um dia, precisarão de meter cunha. Porque o mesmo "item" criterioso sempre varia conforme as circunstâncias, ou os ódios de estimação, onde a vingança se costuma servir, quando não é previamente levantado o critério de suspeição. Por mim, também volto a Sá de Miranda:
Homem de um só parecer,
Dum só rosto, uma só fé,
Dantes quebrar que torcer,
Ele tudo pode ser,
Mas de corte homem não é.
...
Tudo seu remédio tem
E que assim bem o sabeis,
E ao remédio também;
Querei-los conhecer bem,
No fruto os conhecereis.

Obras, que palavras não:
Porém, senhor, somos muitos,
E entre tanta multidão
Tresmalham-se-vos os frutos,
Que não sabeis cujos são.

Um que por outro se vende,
Lança a pedra, e a mão esconde;
O dano longe se estende;
Aquele a quem dói e entende,
Com só suspiros responde.

A vida desaparece,
E entretanto geme e jaz
O que caiu: e acontece,
Que dum mal, que se lhe faz,
Outro mor se lhe recresce.

Pena e galardão igual
O mundo a direito tem,
A uma regra geral;
Que a pena se deve ao mal,
E o galardão ao bem.
...
Sempre foi, sempre há de ser,
Que onde uma só parte fala,
Que a outra haja de gemer:
Se um jogo a todos iguala,
As leis que devem fazer?
Pensamentos nunca cheios,
Não têm fundo aqueles sacos;
Inda mal, porque têm meios
Para viver dos mais fracos,
E dos suores alheios.

Que eu vejo nos povoados
Muitos dos salteadores,
Com nome e rosto de honrados?
Andar quentes e forrados
Das peles dos lavradores.

E, senhor, não me creiais
Se as não acham mais finas,
Que as de lobos cervais,
Que arminhos, que zebelinas,
Custam menos, cobrem mais.

Ah senhor! que vos direi
Que acode mais vento às velas;
Nunca se descuide o rei;
Que inda não é feita a lei,
Já lhe são feitas cautelas.

Então tristes das mulheres,
Tristes dos órfãos coitados,
E a pobreza dos misteres,
Quem nem falar são ousados
Diante os mores poderes.

Os quais quem os assim quer,
Quem os negocia assim,
Que fará quando os tiver?
Nossos houveram de ser;
Tomaram-nos para si.

Ora já que as consciências
O tempo as levou consigo,
Venhamos às penitências,
Senhor, se eu vira castigo
Boas são as residências.

...
Todos nós revolveremos,
Os que tanto não podemos,
E aqueles que podem mais.

...

Do vosso nome um grão rei
Neste reino lusitano,
Se pôs esta mesma lei,
Que diz o seu pelicano:
Pola lei, e pola grei.