a Sobre o tempo que passa: Dos falsos arrependimentos marxistas, aos regressos a jacobinismos e a positivismos que gostavam de ter um déspota iluminado

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.4.08

Dos falsos arrependimentos marxistas, aos regressos a jacobinismos e a positivismos que gostavam de ter um déspota iluminado


Não vou falar de Manuela Ferreira Leite nem do assalto à esquadra de Moscavide. Vou ser chato e comprido. Porque ouvi, ontem, que o ministro da ciência e das universidades decretou que todos os cursos superiores de ciências sociais devem ser práticos, talvez para justificar a meia dúzia que abriu neste presente ano lectivo. Me recordo apenas daquele marechal brasileiro, para quem, na prática, a teoria é outra. Com toda a vénia da física das partículas, apenas invoco Fernando Pessoa, para quem "toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria".


Acrescento uma pitadinha de Aristóteles, para quem a phronesis é a sabedoria prática. Um esforço de reflexão, uma ciência que não se limita ao conhecimento, dado que pretende melhorar a acção do homem. Tem como objectivo descrever claramente os fenómenos da acção humana, principalmente pelo exame dialéctico das opiniões dos homens sobre esses fenómenos e não apenas descobrir os princípios imutáveis da acção humana e as causas. Isto é, considera que, a partir da opinião (doxa) é possível atingir o conhecimento (episteme).


Mais recordo a lição de Leo Strauss, quando nos ensina que a procura racional do melhor regime político foi destruída por três waves of modernity. A primeira onda de choque, que teve o respectivo epicentro em Maquiavel, foi propagada pelo movimento da Razão de Estado, laicizante, católica ou protestante; a segunda veio a ser desencadeada pelo jusracionalismo e pelo iluminismo, levando à vitória da burguesia durante o século XIX; o choque da terceira onda da modernidade, com o positivismo e o historicismo, depois de Marx, Nietszche e Freud ainda estamos a vivê-lo em 2008.


Com efeito, a partir de Maquiavel, deu-se um rebaixamento dos fins, o abandono do modelo ideal, da teleologia natural, da ideia greco-latina de um kosmos natural, hierarquizado e objectivo, com a redução do problema moral e político a mero problema técnico. Com Hobbes, acabou o primado da perfeição, da virtude e do dever, passando a preponderar os direitos.


Segue-se o historicismo, o abandono do padrão de dever-ser, de uma ideia que transcende a própria história, passando a haver uma coincidência do racional e do real, do dever-ser e do ser. A partir de então, a teoria passa a estar ao serviço da prática, torna‑se inteligência do que a prática engendrou, a inteligência do actual, e deixou de ser a procura do que devia ser: … deixou de ser teoricamente prática.


O socratismo até deve achar que o Strauss é um estúpido neoliberal e fica contente com estas observações. Pena que não repare nas novas teorias do socialismo moral de Giddens, no movimento dos gracos, ou que caia na rasteira dos neomarxistas arrependidos que ocuparam o nosso socialismo na gaveta e que se ficam pelo jacobinismo e pelo naturalismo neopositivistas. Apenas lhes falta um qualquer Marquês de Pombal.


Por mim, sempre kantiano, prefiro defender a ideia republicana de forma não jacobina, como algo capaz de conciliar a liberdade, enquanto recusa da autoridade dogmática do governo, e a igualdade, isto é, como a recusa dos privilégios através da submissão a leis gerais, rejeitando, por um lado, a anarquia (a liberdade sem ordem) e, por outro, o despotismo (a ordem sem liberdade).


Uma terceira via que é dada pela cidadania, entendida como autonomia, como a submissão (ordem) à autoridade que cada um dá a si mesmo (liberdade). Uma unidade que apenas se consegue através do direito. Com efeito, o pactum unionis civilis que institui o Estado não é redutível a um contrato de negócios, dado organizar uma multidão de seres razoáveis e instaurar um ser comum que, sob uma Constituição é um fim em si mesmo. Algo que não é empírico nem histórico, situando-se apenas na ordem normativa, constituindo um princípio a priori da sociedade civil, uma simples Ideia da razão, isto é, o tal imperativo categórico da política, entendido como um comando absoluto da razão prática.


Entre a teoria e a prática, apenas podemos dizer que o Estado é teoricamente prático e praticamente teórico. Saber se "o que é verdadeiro em teoria também o é na prática",como dizia Kant,em 1793, ou se "a prática é tanto melhor quanto mais prática; a teoria é tanto melhor quanto mais teórica", como replicava Vilfredo Pareto, é tarefa ingrata.


Nunca é demais reconhecer, como assinala Jürgen Habermas que "só pode orientar verdadeiramente a acção o conhecimento que se libertou dos simples interesses e se instalou nas ideias e que justamente adoptou uma atitude teórica".


É que, como assinala Albert Camus, nestas circunstâncias, "a ciência explica o que funciona,não o que é".


E isto porque "toda a teoria", assim considerada,"é uma explicação de conjunto, ligando uma série de fenómenos entre si" e visando apenas "uma tentativa de generalização". Com efeito, como afirma Hannah Arendt, depois do nascimento da ciência moderna, com a dúvida e a desconfiança do cartesianismo,"a noção de teoria mudou de sentido. Já não designa um sistema de verdades razoavelmente reunidas, que, enquanto tais, não tinham sido feitas, mas dadas à razão e aos sentidos. Transforma‑se pelo contrário na teoria científica moderna que é uma hipótese de trabalho mudando segundo os resultados que produz e dependendo quanto à sua validade, não do que 'revela',mas da questão de saber se 'funciona'. É o "primado da razão sobre o fazer".


Entre nós, o idealismo neo‑kantiano de António Sérgio chega à conclusão que "uma teoria é comparável a uma renda de bilros toda ela tecida pela nossa mente,e para a qual a sensação deu alguns alfinetes,e nada mais do que alfinetes". Para este autor, "a origem do pensar não está fora dele,e de que o seu ponto de partida já é pensar". Considera que "o pensamento não seria estruturação de quaisquer 'dados' prévios, não teria unicamente uma função 'expressiva', mas seria algo 'construtivo' e activo; algo indecomponível em que se cria o objectivo pelo ordume das malhas das relações‑conceitos, produto do acto mental do juízo. Todo observar seria de facto um operar. O espírito(por outras palavras) seria criador já nos seus feitos mínimos, já no que chamamos dado". E isto porque "aquilo que se chama um'facto' seria sempre no âmagouma construção mental, uma estruturação do intelecto... desde o início o papel da inteligência seria essencialmente activo,tomando a iniciativa das perguntas e a iniciativa das respostas ... não haveria factos com anterioridade à ideia".


Na verdade, como assinala Raymond Aron, "poucas palavras são tantas vezes utilizadas pelos economistas, sociólogos ou politólogos como a de teoria, poucas conduzem a tantos equívocos". E isto porque a palavra tem duas significações e duas tradições.


A etimológica que confunde teoria com filosofia e a considera como o conhecimento contemplativo da ordem essencial do mundo.

A cientista, marcada pela vontade do "saber para prever e poder", que a considera como "um sistema hipotético‑dedutivo constituído por um conjunto de proposições cujos termos são rigorosamente definidos e onde as relações entre os termos (as variáveis) revestem as mais das vezes uma forma matemática".

Ora, acontece que quem trata de política sente, por vezes uma espécie de complexo de inferioridade face a outras ciências sociais, como , por exemplo, a matematizável economia pura, e trata de assumir‑se como "científico" à imagem e semelhança das ciências da natureza.

No fundo, como que está a atribuir um carácter de ciência subdesenvolvida à ciência que não é ciência dita exacta. Está a esquecer que o teórico se pode, no princípio, ser hipotético‑dedutivo, acaba, como conclusão, por pisar os terrenos da grande interrogação da teoria contemplativa.

Basta que tenha necessidade de integrar os fenómenos que não se repetem, que são os acontecimentos da história, produzidos pelos seres que não se repetem, que são os homens, no todo da existência humana.


Porque, como dizia Pascal, "o homem supera infinitamente o homem".Porque não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história. Porque o normal é haver anormais...

Aliás, Aron, acaba por concluir, quanto à teoria das relações internacionais , que, no fim do itinerário, o "conjunto" levou‑o , contrariamente ao que pensava no começo, à "determinação do sistema inter‑estadual" e æ "prudência do homem de Estado", passando pela "análise das regularidades sociológicas e das singularidades históricas", o que "constitui o equivalente crítico ou interrogativo de uma filosofia". Isto é, ele que quis começar por ser cientista de uma teoria cientista, acabou por ser cientista de uma teoria contemplativa.


E, como salienta Giovanni Sartori,"a acção do marxismo demonstrou nos últimos cinquenta anos, a falta de unidade entre teoria e praxis; mostrou que a praxis se inverte, ao contrário do que previa e desejava a teoria....

O marxismo é todo ele objectivo e não meios; todo prescrição, nada instrumentação; é exortação, não engenharia". Do mesmo modo Albert Camus que refere que a doutina que Marx queria realista "era‑o, com efeito, no tempo da religião da ciência, do evolucionismo de Darwin, da máquina a vapor e da indústria têxtil".


Concluo, como Sartori: "numa extremidade, a ciência devora a política;na outra, a política devora a ciência. Os dois extremos se tocam, e se transformam um no outro:a obrigação do cerdadeiro politólogo é impedir que isso aconteça"


Com efeito, neste domínio, como denuncia Sartori, "há filósofos disfarçados de cientistas", tal como existem charlatães em busca de misturas de literatura, filosofia, política, quem sabe,também de poesia e outros ingredientes". Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que também há cientistas que mais não fazem do que dar uma ilusão de cientificidade a uma determinada ideologia e, muito aristotelicamente, que a poesia pode ser mais filosófica,no sentido de mais verdadeira, do que a história.