Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
25.4.08
Ontem não postalizei os meus sentimentos neste blogue, dado que as minhas obrigações de funcionário público me obrigaram a aturar as memórias sessentonas de um antigo director-geral que ainda pensa que vai ser ministro, perante o reverencialismo graxista de uma fileira de carreiristas à espera de promoção. Daí que não pudesse preparar as minhas comemorações do 25-A que passariam por uma reflexão sobre os falecimentos de dois protagonistas do nosso último meio século, o cónego Melo e o Francisco Martins Rodrigues, dois tipos de fibra, entre o tudo e o seu nada, que bem representam as nossas duas faces da Maria da Fonte.
Por isso é que, perante a aparição de Otelo Saraiva de Carvalho na RTP, fiquei agarrado à nossa "folle du logis" e quase encantado por aquele velhote de quem sempre me senti adversário. Porque, parafraseando uma clássica frase de Xico Martins Rodrigues, segundo a qual um bom revolucionário nunca pode ser um bom humanista, Otelo, com aquele estilo de gajo porreiro nunca poderia ser Fidel de Castro e mandar-me fuzilar se tivesse vencido o 25 de Novembro, contra Eanes e Melo Antunes. Ora, como estes também sabiam prezar a camaradagem e a amizade, foi desse sincrético, mais humanista do que revolucionário, que o nosso regime paradoxal foi felizmente delineado.
Por isso gostei ontem de ver a Ana Drago, a assumir-se como aluna do Boaventura Sousa Santos, tal como achei bem esgalhada a intervenção do Nuno Melo. Já os representantes do PCP e do PS no programa perderam quando se vestiram de aparelhísticos, ao serviço do respectivo politicamente correcto, enquanto o Marco António do PSD teve a intuição de praticar o espírito do 25 de Abril e do 25 de Novembro, especialmente quando comunicou que a respectiva faceta do menezismo mantinha o espírito PPD e se assumia contra Santana Lopes, preferindo Pedro Passos Coelho.
Infelizmente, ao ler os jornais do dia, passo os olhos pela intervenção de um operacional das espionagens caseiras e ibéricas e, como um dos conhecedores dos meandros desse falso científico, prefiro recordar como, ainda há uns anos, nessas mesmas salas, se recebia o Francisco Martins Rodrigues, com a minha presença moderadora. Daí que tenha decido comemorar hoje o 25 de Abril, no silêncio das minhas reflexões. Vou reler as memórias do meu querido amigo António César Gouveia de Oliveira (1941-1997), Os Anos Decisivos. Portugal 1962-1985. Um Testemunho, Lisboa, Editorial Presença, 1993.
Porque aí volta este país de sol a rodos, quando as sementes de inverno já iam crescendo. Aí permanece a luz deste nosso lugar comum, feito daquele penseé du midi a que se referia por Albert Camus. O tal Sul da Europa onde não entram as névoas do norte, a tal luz e sombra que nunca se deu bem com a penumbra dos calculistas.
Esta luz voltada para o Atlântico, que vai pelo Atlântico a caminho do Sul e que também se não confunde com o mediterrânico sentimento. Algo que tem o seu epicentro naquela linha que vai além do trópico e da Taprobana, nesse meridiano que os portugueses semearam nos corpos da saudade, entre a guerra e a paz.
Só que, para sermos inteiros, nesta procura, temos, de vez em quando, que peregrinar as raízes da Beira. Ir ao profundo interior dos planaltos, refrescar-nos nos castanheiros e nas cerejeiras, ir à nascente dos rios, aos glaciares antigos, subir às serras e recordar-nos dos míticos pastores que nos deram impulso.
E aí, nesses pequenos riachos da invernia, por entre as pedras, nesse mais alto que nos faz ir por dentro de quem somos. Nesses riachos que descem das oliveiras paras as águas de rios que nos dão mar. Nessas terras pontuada de pedras, com o nevoeiro lá em cima. E peregrinando tempo fora, tempo dentro, chegamos sempre à nossa serra-mãe, a essas pedras escuras de xisto castanho e oliveiras antiquíssimas, às pequenas leiras no fundo dos vales, com árvores correndo em desfilada, na contramão.
Tal como o César, também eu chamo provinciano a outras coisas, como ao falso urbanismo de província, a essa cópia feia de outros urbanos exóticos que procura desajeitadamente sair do rural, agredindo a província profunda que o cerca, mas da qual parece ter vergonha.
São tão provincianos como os novos politicamente correctos, pensados pelos que lêem semanários de fim-de-semana em vez de jornais desportivos. Provincianos são os tiques escleróticos do medo que se opõe ao contramedo, esse fundo salazarento em que assenta o facciosismo, de muitos ares de idiota pendurados num cabide de fatos elegantes, este país instalado, de castas orgânicas empedernidas que continua a querer manter-nos numa espécie de prisão.
Tenho pena que César não chegasse a emitir o necessário manifesto anti-Dantas, capaz de proclamar revolta. Tenho pena que não pudesse ter seguido até ao fim o seu próprio fim, como transparece nalguns papéis de cumplicidade que destruiu ou naquela conversa que me contou do africano que à beira de um desesperante Tejo lhe deu alento, partilhando com ele um pedaço de pão e aconselhando-o a olhar de frente a vida, para além da morte. Apenas vos convoco para que releiam Os Anos Decisivos, num rompante, notando como nele continuam desfraldadas as bandeiras vermelhas do ser do contra e as angústias quanto à procura do ser cultural português. Aí César permanece vivo, nesse lado humano assente na permanecente raiz rural, onde ainda nos comovem as descrições que faz do tempo de guerra e da morte de um filho.
Os beirões são assim: não deixam de ser o mesmo, apesar de passarem a professores, perdidos em bibliotecas ou emitindo aulas. E em César há um português que permanece, e que faz da pátria uma federação de amigos. Obrigado pelo teu exemplo. Tentarei cumprir fidelidade. Até sempre e para sempre.
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