a Sobre o tempo que passa: Quem não come o pão amargo dos homens livres desconhece que a libertação só é possível a partir da memória do sofrimento

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.4.08

Quem não come o pão amargo dos homens livres desconhece que a libertação só é possível a partir da memória do sofrimento


Relendo o meu último postal, apenas repito o que, num dos antepenúltimos, assinalei. O corporacionismo das vozes tribunícias do sindicalismo e os agentes do estadão, como era previsível, e o previ, preto no branco e em jornal, alargaram o terreno do bloco central situacionista. Daí que quase passe incólume a denúncia apresentada no Semanário. Daí que se recubram de silêncio muitas outras situações de compressão da cidadania, só porque Pilatos consegue lavar as mãos e Barrabás faz discursos. Por outras palavras, quando a inteligência se deixa de casar com a honra e o pensamento entra em conflito com o entusiasmo, a direita pode esperar que os Berlusconi surjam à frente das sondagens e a esquerda que se mal discutam os casos de Fernanda Câncio e de Jorge Coelho, porque, nas pegas de cernelha, há melhores hipóteses de não se levar uma cornada.


Apesar de estar prestes a ter que entrar numa longa resistência judiciária e de, consequentemente, ter que silenciar, sofrendo o ostracismo, devo concluir que, ontem, ao fim da tarde, na Praia do Meco, estava um cósmico pôr do sol e que continuo na beneditina pesquisa de coisas eternas, só porque tenho que explicar coisas da velha polis grega e da antiquíssima respublica romana, mergulhando nos subsolos para que as aulas que estou a dar sobre a matéria não sejam repetição de sebentas, incluindo das minhas.


Daí que tenha de agradecer aos causadores da presente crise política, cultural e moral do que resta da nossa pátria. Bem como aos agentes do estadão e aos pequenos sargentos e inquisidores do micro-autoritarismo subestatal. O clássico ostracismo, ao libertar-nos do mainstream, permite olhar os vermes de forma laboratorial, colocando-os nas lâminas do nosso microscópio, como objectos de análise, passíveis da astronómica observação à distância.


Aliás, em muitos momentos da história, quanto maior é a crise e a persiganga, melhores são os resultados da criatividade individual, nascida da revolta e desse pedaço de resistância de quem prefere a raiva ao ódio. Quem não come o pão amargo dos homens livres desconhece que a libertação só é possível a partir da memória do sofrimento, coisa que nenhum escrevinhador das vulgatas da história dos vencedores consegue minimamente vislumbrar. Por mim, quero continuar a viver como penso e a escrever aqui, ou noutro lugar, o que é o não pensar como vivo. Sou ambicioso demais para pactuar com os agentes do estadão nas barganhas do poderio, das medalhas, dos prémios, das comendas, das honrarias fúnebres e dos subsídios.