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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

15.6.09

Ensaio de um manifesto contra os padrinhos a que chegámos...


Por causa de Montaigne e em vésperas de exames nacionais, sob signo de nossa senhora de Lurdes, julgo que vale a pena enumerar os dois principais defeitos do nosso verticalizado sistema de ensino: a falta de tradição encicopledista e o exagero de sectarismo, onde abunda o "index librorum prohibitorum", mas falta a "ratio studiorum". Em primeiro lugar, falha o sistema de pesquisa no acesso ao todo e a tudo, mas abundam as selectas e as antologias que engordam as editoras escolares, dando pouco nervo ao estudante. Em segundo lugar, permanece o sectarismo tanto da censura eclesiástica anti-herética, como das laicas mesas censórias do estadualismo anti-dissidentes. Por outras palavras, padecemos, como dizia Orwell, de dois tradicionais colectivismos morais que nos lançaram em sucessivos ostracismos: o catolicismo inquisitorial, feito direita pura, e o comunismo estalinista, feito esquerdismo.


Ambos tendem a transformar-se em pensamentos controleiros dos aparelhos ideológicos, sobretudo quando os conquistaram nos crepúsculos de regimes medrosos que exageraram nos aparelhos de repressão, sobretudo quando lhes faltava o censentimento e a persuasão da comunidade.


Dessa ausência de capacidade de reflexão sobre o todo da floresta, resultou o dogmatismo do compêndio único, com as vulgatas catequísticas a substituirem o "nosce te ipsum" e o "je pense, donc je suis", gerando-se uma sucessão de modas que passam de moda, onde apenas vai sendo novo aquilo que se esqueceu.


Daí vigorar o tal sectarismo que tratou de ocupar serodiamente os programas escolares, pelo que os professores passaram a ser avôs de si mesmos, não faltando a catedrática e emérita conspiração de avós mortos-vivos que se transformam em padrinhos do carreirismo de muitos netos, bisnetos, sobrinhos, clientes e demais familiares. Mesmo na política educativa, assiste-se a este neofeudalismo de fidalgotes capitaleiros, perpetuando uma sociedade de corte que nos provincializou a todos. Veja-se como ontem, no CM, uma catedrática dava o terno nome de padrinho a um candidato a provedor, enquanto na citação da semana o passado criticava a teimosia que nos vai proibindo o futuro, depois de nos ter direccionado durante décadas...


Lisboa, que é Portugal, onde o resto é paisagem, transformou-se assim numa esponja que absorve todas as vagas colonizadoras da globalização, pelo que é possível detectar um qualquer intelectual desempregado de uma das grandes culturas nacionais da Europa ser para cá despachado como adido alienígena. E assim posto em reforma dourada, com o sossego da Caparica a cinco minutos de bólide, consegue, pela diplomacia do croquete e a consequente adulação dos instalados e do geminado sindicato dos elogios mútuos, controlar o que chamam páginas literárias e livrar-se do necessário manifesto antidantas, mas ajudando a reforçar esta carapaça de neodogmatismo antidogmático que nos afasta das grandes correntes do nosso e de todos os tempos.


É inevitável que um jovem formado por estes aparelhos atinja o começo da maturidade com enormes buracões informativos, com católicos a banirem Kant e laicíssimas criaturas sem acesso a São Tomás de Aquino, não faltando a hemiplegia mental de direitistas que saneiam esquerdistas e de esquerdistas censurando direitistas. Daí que um desses autores de galeria se esqueça dos seus tempos de ruptura juvenil e aspire, um quarto de hora antes de estar com os pés para a cova do caixote de lixo da história, com comenda ao peito, a emprenhar nossos ouvidos com plágios requentados que a planície dos súbditos mentais acha genial, quando bastaria o recurso a uma qualquer edição de bolso de um dicionário de citações.


Esta hiperinformação que nos esmaga, acompanhada por um excesso de universidades, editoras, jornais e telejornais, este abuso do quantitativo não rima com o qualitativo da imaginação e da criatividade. Não porque a massificação seja pior que o elitismo clubista da sociedade fechada, mas antes porque a meritocracia não consegue conformar a democracia. Não há assim seleccionadores nacionais que nos saibam dar espírito de equipa , faltam organizadores do trabalho nacional que nos consigam mobilizar para o bem comum e deixa de considerar-se a justiça como estrela do norte da república. Veja-se a entrevista de Pinto Monteiro ao "Expresso".


Fragmentados por conflituosidades sectárias, passou a ser dominante a ideia de poder pelo poder, onde os jogadores em cena pensam que ganham quando os concorrentes perdem, porque confundem a unidade com a unicidade centralista e concentracionária e transformam a diferença em dissidência que se condena como ostracismo, rifgorosamente vigiada pelos bufos ao serviço do centro. Veja-se o que se passa com a gaguização das universidades, feitas restos de partidocracia e de conselhos gerais de notáveis...


Não havendo as convergências e divergências, torna-se impossível a evolução espontânea da complexidade crescente, o "e pluribus unum", da unidade na variedade e do universal pela diferença. Somos definitivamente rebanho à espera de bordão, sem o substantivo do pluralismo e sem o verbo do controlo do poder. Federação é pecado. Descentralização, um risco. E Sócrates não é o bode expiatório, tal como os simulacros de Cavaco não se podem confundir com o Desejado.


É natural que os caquéticos da persiganga dissertem sobre o futuro, depois de terem condenado, com estrelas amarelas, simples resistentes. E não faltam catedráticos louvando a padrinhagem que sempre foi inimiga da criatividade. Logo, resta o silêncio da revolta e a procura do exílio interno, mesmo que continuemos, todos os dias, a semear as urgentes palavras de subversão face a esta desordem instalada a que chamam progresso.


As vacas sagradas da decadência, que continuam a marcar esta claustrofobia e a provocarem a endogamia, estão pujantes, sem pérolas mas com muitos suínos da respectiva criadagem. O reino da quantidade, habilmente controlado pelo despotismo pretensamente iluminado deste ministerialismo irremodelável, continua a fingir, com palavrosas tecnocracias e muitas traduções em calão, que bastam observatórios, avaliadores e provedores, reverendos, obedientes e obrigados, mas já nem são eles que dominam o manda quem pode, obedece quem deve. Mandam mais os valadões e os moreias que pensam baixinho e nos inundam com as vulgatas oficiosas do português suave que nos unidimensionaliza em colonizados.


Assim, cansam as falsas alternâncias do viciado jogo eleitoral, a que chamam mudança, quando não passam do mais do mesmo. As lebres trazem sempre consigo os emplastros e os implantes de silicone mental, os tais que saltaram para a garupa do cavalo do poder quando este assumiu pose de burrico à procura de cenoura, quando os rabejadores permitiram a pega de cernelha e as chocas asininas o endoideceram. A sucessão de frustrações que nos transformou em deserto de pensamento e de entusiasmo vai continuar. Pedimos desculpa por estas campanhas e actos eleitorais, o programa de divórcio entre a inteligência e a honra usurpou a democracia.