a Sobre o tempo que passa: A grainha de uma baga de mundo. Por Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.7.10

A grainha de uma baga de mundo. Por Teresa Vieira



O estrangeiro, cujo olhar pousa naquele hotel e o decifra, vê o quanto o mesmo é empenhado ao bom cumprimento de um hotel de cidade portuária.

Sente-se que o hotel é o centro de um cenário perdido e ainda assim refugio, e, enquanto centro e porta de mar, foi procurado por Garcia Lorca e Hemingway, seguramente para muitos encontros e despedidas e exacto local de cúpulas de escrita e cópulas de espessuras mais secretas.

Surgir assim, este hotel, quase mistério na arquitectura de uma casa de campo inglesa, rodeado de frondosos jardins, e através dos quais deixa ver o mar por onde aqueles barcos se fazem ao destino do mundo, é o mesmo que definir o quanto os seus terraços são belos e propensos ao perigar selado de abraços e juras à beira de um porto de partida.

Não se desconhece o fundamento das cadeiras de verga espalhadas nos terraços e nos jardins, rodeando pequenas mesas cujo casamento aceitamos de imediato. A pessoa e a mesa, o gin tónico e o porto de mar por entre as arvores, a janela do quarto que nos espreita e a memória dos filmes com Bogard, constituem um só manual de interpretação a 20 km de África.

Pois, África ali tão perto. África numa militância de convites que tanto influem nas relações afectivas, nas contradições das vidas que a desafiam.

Depois, os múltiplos pássaros nos jardins a aconchegarem os ninhos por entre as telhas do Hotel e sempre virados ao mar. E as enormes gaivotas que espiam barcos e hóspedes, mergulhadas em torpor às três da tarde, e bem despertas e fugidias quando sincronizadas pelos ventos do início da noite e das manhãs.

Um dia chegou ao hotel, um homem que andava sempre vestido de cinzento e preto e fazia bem sentir a sua presença aos restantes hóspedes. Tinha sempre na mão um livro e um lápis e olhava-nos com um olhar de aço do qual nenhum sentimento transparecia. Assim se impunha, fazendo de quando em vez, umas perguntas sobre as aves que faziam do hotel a sua casa de segunda habitação.

Surpreendi-o quando usava uns binóculos para espreitar o longe. Ou o luto? Não sei. Só sei que o surpreendi. E depois deixei de o ver.

Assim os dias escorriam nos próprios olhos dos hóspedes que, perdidos em distâncias, vogavam nas suas poses próprias, eixos de vida, mediadores de decifrações.

E o hotel, ocre num chão subtraído ao tempo.

Ao longo dos corredores de acesso aos quartos, podíamos ver os inúmeros quadros-fotografia da realeza que fizera - nos anos vinte - deste hotel o repouso de verões, onde se discutia também a reordenação do mundo à proporção de uma África ali tão perto.

Descobriam-se olhares cúmplices nestas fotografias: amores sincronizados com o mar e inflamados pelos abraços de infindáveis noites secretas num vendaval de cor generoso às vidas pardas.

Também se presumia, exactamente das mesmas fotografias, quais os seres que se divertiram com os jogos de cartas e os charutos e as intrigas palacianas da corte da altura.
Também se refere na história deste hotel, a importância da situação estratégica do mesmo, e que motivou ter sido escolhido por muitos espiões que, durante a segunda grande guerra, dele moveram poderes nunca descritos ao ponto certo do impacto que tiveram.

Intui-se que o hotel é um epicentro de abalos; um prazer à mercê do tacto dos dedos e do olhar; um ovo-jardim num universo impaciente; uma anca astral a suster um porto de partida e a dar-lhe a permanente força de assim se manter e expandir, sincopado ao destino.

Quem espera o céu, seja ele qual for, sabe, estando dentro das fronteiras deste hotel, que o céu passa por uma rocha que enfrenta África do outro lado. E para se ser entendido e amado e descrito nas palavras dos escritores, terá de se saber ser abandonado, e terá de bem conhecer, pelas palavras de Duras, que as barragens também se constroem contra os estreitos de mar que, como este, um dia afundaram o navio “Utopia” que transportava 500 italianos que faleceram entre a mão da Europa e o braço de África e na falta de ar que só os sonhos aportam.

E a cada dia o hotel mostrava mais dos seus ocultos pontos. A gama sem fim dos seus sombreados. A apoteose pagã das vidas crentes.

Atentos, partimos. É justamente destes locais que se parte sempre e se tecem os fios de um texto num espesso feixe que permanece não cartografado.

Mas nos terraços daquele hotel, no interior dos quartos austeros, os medos nascidos do silêncio têm porte, e os estrangeiros destros tacteiam os segredos dos homens concretos.

Existe também uma hora do dia do como chegámos à vida e à vigília? Do onde estamos e do onde partimos? E as noites são propensas às forças indagadoras.


Afinal, este local, uma força medianímica e apenas e somente a grainha de uma baga de mundo.
M. Teresa B. Vieira
5.07.10
Sec.XXI