Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
30.9.10
29.9.10
Setembro cor-de-rosa em forma de abecedário republicano
Absolutismo Infelizmente, a herança absolutista, tanto das revoluções como das viradeiras, incluindo a do autoritarismo do século XX, obriga a sucessivas reeleições do situacionismos, dado que não continua a vislumbrar-se um pessoano indisciplinador que nos faça regenerar a fibra multissecular da independência. Mais do que falta de vontade política, há um vazio colectivo de vontade de sermos independentes.
Angola é nossa! A constituicao é nossa. A republica é nossa. O Estado somos nós. Nós, os timoneiros sem leme, nós, os donos do poder, onde quem parte e reparte não é burro e percebe da arte...
Bocas do estadão Quando o Estado tem como bocas que pronunciam as palavras da pátria os ministros Lacão, Silva Pereira e Mendonça, apenas podemos concluir que conquistar e manter o poder já não rima com governar. Apenas podemos concluir como quem mais durou em São Bento no século XX: "o exencial do poder é procurar manter-se..." (deixamos o sotaque sontacombandense, no erro ortográfico, para efeitos identificadores da obstinação...)
Centrão de náuseas Temo que as sereias do situacionismo nos atirem para a instabilidade de um centrão nauseabundo e conformista, onde, na falta de rei, um qualquer roque pode servir, para que continue o regabofe desta clausura sistémica e auto-reprodutiva...
Chefaturas Já descobri a causa do ruído: esta democracia está prenhe de despotismos e chefaturas, do servilismo dos cortesãos e clientes, da venalidade dos chamados servidores, do luxo dos empregados e da injustiça dos patrões, fidalgos e camaradas. Vou, por isso, reler São Tomás More... "Outra espécie de homens costuma ajuizar os talentos dos escritores sentados À volta de canecas de cerveja... Mas só quando se encontram, como diz o ditado, fora do alcance de tiro. Pois são tão escorregadios e astutos que só o fazem fora do alcance de homens honestos que lhes aplicassem o correctivo merecido" (Tomás, More, "Utopia", Epístola)
Cobardia Uma cobardia difusa, como no avestruz que mete a cabeça na areia, alimenta uma classe política predadora. E o que se passa lá em cima, no cume do Estado, propagou-se para baixo, corrompendo todos os redemoinhos sub-estatais, de universidades e autarquias aos mais minúsculos dos serviços público, onde a febre do facciosismo, do clientelismo, do fanatismo, da ignorância e da intolerância se transformou em epidemia...
Colectivismo moral de seita Um dos males de Portugal tem a ver com o colectivismo moral de seita. Muitos, que não vivem como dizem qualificar-se politicamente, consideram que o mal e o bem são como a direita e a esquerda, não admitindo que o o bem tem muitos pedações de mal e vice-versa...Ser justo não depende do sítio onde se está nominalmente, mas do viver como se pensa, sem pensarmos como depois vamos viver...
Constituição E nem sequer nos serve que continuem a tecer a presente renda de bilros constitucional, especialmente a que nos impede uma solução democrática imediata, só porque estamos suspensos por uma eleição presidencial, num modelo que ameaça lançar-nos para o redemoinho de uma república impotente...
Decretinos Persisto em revolta contra as abstracções da constitucionalite, manipuladas pelo decretino do poder instalado, mesmo que este se chame pós-revolução ou estadão xuxial. Na prática, a teoria é outra: o legalismo regulamentar cunhado pelo martelo da golpada, incapaz de assumir a possibilidade de leis injustas e de poderes ilegítimos. Todos atingem o orgasmo com um simples processo disciplinar!
Défice A desgraçada situação financeira em que nos encontramos continua a ser completamente ocultada ao homem comum, através daquela refinada técnica de propaganda chama hiper-informação, com sucessivas bombas de desfragmentação que nos fazem sobreviver neste aparente jardim das delícias partidocráticas...
Ditadura do estado a que chegámos Lá vou acordando para esta ditadura do estado a que chegámos cuja síntese é a lacónica figura do ministro encarregado da oposição à oposição que dita a ideologia dominante como sacristão que perdeu o sentido dos gestos, com comunistas e bloqueiros ajudando à missa dos que querem conservar o que está...
Estado social I E ninguém diz que quem proclamou o Estado Social em Portugal foi Marcello Caetano, o nome que quis dar ao Estado Novo sem Salazar...O conservadorismo do que está (PS, PCP, BE e D. Carlos de Azevedo) e que, inquisitorialmente, declara heréticos os que não são bombeiros pirómanos, não repara nas origens domésticas da coisa. O PREC e o pós-PREC apenas continuaram a tradução em calão que Salazar fez de Bismarck (Wohlfahrstaat) e de Jules Férry (État Providence), com meio século de atraso...E agora o bom e velho Estado já não há. Vive em união de facto e de direito com o Estado da União Europeia, onde até os orçamentos nacionais têm visto prévio da fonte donde jorra a moeda única...
Estado social II Logo quando dizem que a direita radical é liberal e neoliberal, os cantarolodores do pensamento único, apenas confirmam que Salazar era da esquerda, socialista e tudo. Daí que um consequente anti-salazarista prefira ser da facção liberal que tanto inventou o Estado Racional-Normativo (fundado por Mouzinho da Silveira) como criou no pós-guerra o Welfare State (Beveridge, aqui traduzido por Armando Marques Guedes...)
Falta de palavra Quando os políticos mais altezas da nossa teatrocracia mostram os traseiros da falta de palavra, apenas podemos concluir que eles não sabem olhar o sol de frente, quando pisam o palco comunicacional, não passam de sacristães que perderam o sentido dos gestos, baralhando o guião. Ainda não estamos na pessoana oligarquia das bestas, mas é evidente que a democracia resvala para a ditadura da incompetência!
Ideologia na gaveta Todos os partidos do nosso arco da governança, quando estão no poder, metem a ideologia na gaveta e só a usam como preconceito de esquerda ou fantasma de direita para fazerem jogos florais de oposição ao irmão-inimigo com quem acabam por repartir o bolo do estadão.
Imagem, sondagem e sacanagem Recordando a definição cunhada por Manel, o poeta, relativamente ao socratismo ("imagem, sondagem, sacanagem"), apenas temos que enaltecer José Pinto de Sousa: conseguiu que o candidato alegre se enredasse na teia. Só que Coelho acelerou os Passos, em nome de outro lema ("quem com agenda mata, pela agenda pode morrer"), todos trocando de papéis nesta teatrocracia...
Jogos florais Os jogos florais politiqueiros sobre a razão atendível do princípio da melhoria incontestável fazem parte da quantidade de energia que se gasta numa tentativa de mudança, mas que fica para sempre na zona do desperdício. Até há pouco esse lixo da entropia estava sujeito ao princípio da gravidade do bom senso. Agora, dispersos em falta de senso, do bom ou do comum, pairam como detritos tóxicos do "agenda setting"...
Mortos-vivos O morto-vivo deste sistema partidocrático e plutocrático, com os seus aparelhismos de controlo da política, da economia, da sociedade e dos indivíduos, bem como dos financiamentos da conquista do poder, parece estrebuchar, mas ainda tem suficiente energia para nos continuar a amarfanhar em podridão de pântano...
Palhaços E voltou o ruído da propaganda dos palhaços do circo que prometem pão em nome do estadão; invocam o fmi, instrumentalizando a pátria; ou cantarolam consenso, usando a palavra Alemanha, a conselho da banca ou para que o presidente que está seja reeleito. Já estou farto deste domínio do ninguém, accionado pelo chamado comunismo burocrático e pelas homilias das sopeiras do regime...
Presente-passado Soares e Cavaco, os pais-fundadores do situacionismo da Europa dos subsídios e dos patos bravos, lá vão falando, mas já não fazem, nem arrependimento. São presente-passado, como o centenário da república, neste exagero de pretérito sem saudade de futuro, transformando os brandos costumes num mero comemorativismo quase funerário. Resta a incógnita da revolta, em regime de prognóstico depois do fim da bandalheira...
Propaganda As raízes do patriotismo foram decepadas pela propaganda e pelo "agenda setting", onde se elevam a protagonistas os meros activistas que transportavam a pasta para as velhas récitas de salão paroquial, com guiões comprados em saldos de naftalina.
Soberania da coragem Só a soberania da coragem pode dar uma resposta institucional a estas circunstâncias excepcionais. Não há um qualquer D.Sebastião orgânico que possa fazer um golpe de Estado constitucional. Apenas resta um acto de humildade: o Parlamento renunciar à ditadura sistémica da partidocracia...
Sociedades discretas As discretas reuniões dos donos do poder deram em raia parlamentar e em sacristas entrevistas a Judite de Sousa. Apesar de muitas comadres em palhaçada, ainda não desabou a algazarra da verdade. Os mantos diáfanos da literatura de justificação ainda recobrem um povo de impostados que não quer assumir o risco da cidadania fiscal. E o orçamento ainda se assemelha a um caixa multibanco da árvore das patacas...*
*In Albergue Espanhol
26.9.10
Ramos Rosa. Por Teresa Vieira
Para Ramos Rosa
Descobrir e conhecer o princípio da palavra, é um dos confrontos de especificidade inconfundível que o Escritor sempre enfrenta.
A utilização da linguagem, nomeadamente, da linguagem escrita e não desatenta à denúncia de horizontes opados, constituiu uma luta franca de Ramos Rosa à vigilância no acto de leitura do próprio acontecer.
Sempre a ressonância interior da sua escrita também visou romper o nanismo da criatividade, esse mesmo que corresponde ao homem-valor-desaparecido, e à secagem do ar que lhe é destinado por direito.
Assim, entendi a força de Ramos Rosa numa escrita que cria sempre pontes entre o homem e a sua clarificação, fermento bastante à implacável decadência de uma qualquer verdade.
Creio que os nossos dias ignoram que o mundo faz-se sonho, e sonhar faz-se mundo, como escreveu Novalis, e, ignora-se, inclusive, a inquietude do homem, tentando cessar-lhe o mosto das insensatas paixões: aquelas que são trilhos fortes e flagrantes e independentes, aquelas cuja ideia só por si age em nós.
Assistimos a tempos em que se esvai a linguagem legítima, portadora de identidades e de sentires, de tal modo que se ignora a fantástica utopia da palavra.
É então chegado o momento de recorrer mais uma e outra vez a Ramos Rosa: à sua bela e certeira palavra-flecha. E nunca é excesso recorrer à sensação do Ser saboreado.
A linguagem é uma das medidas pela qual sobressaem os homens; constitui um domínio antiquíssimo na arte da transmissão das coisas; exprime a cultura íntima à própria pátria-mãe; cria fortíssimos laços de compreensão planetária; arrasta em si a obstinação de exprimir o inexprimível; insinua-se às essências primeiras e aos fundamentos últimos; seduz em todos os limiares...
Devo dizer que receio, receio muito que os pantanosos vazios dos homens e nos quais ensaiam o exercício de supostas competências comunicacionais, obscureçam, o quanto são eles próprios os bárbaros e sua única periferia.
Em rigor, o século XXI lançou a dúvida sobre os garantes da esperança, bem como a credibilidade dos tempos do futuro, mas a conquista de adventos de novas eras, de novos saberes insubmissos, residirá em princípios de palavra que não param de datar com força-luz a interpretação dos alertas já que
“ Com minuciosa febre
alguém traça na folha
a sibilina trama
de um meticuloso desastre”
RAMOS ROSA
Às vezes não é clara
A leitura da realidade.
Escapa-nos o poema
Que ficou na fila
Do ninguém sabe.
No entretanto
Também se escrevem
Magros sucedâneos
Atordoados.
Mas não basta dizer um sentir
Com um outro nome:
Há que registar se o excesso não foi nosso.
Há que registar o que leram certas lentes
De quem olhou para o mundo e seu revés.
Às vezes, um homem consegue ser a palavra
Entre a terra e a terra
E abrir uma porta.
TERESA VIEIRA
Lisboa, 1 de Outubro 2007
24.9.10
Testemunho
O tempo que por mim passa se suspendeu. Que meu corpo quebrou, mas a vida ainda não torceu e já posso falar em pretérito sobre meu internamento em dois hospitais e consequentes intervenções cirúrgicas. Tenho a felicidade de já poder narrar esses episódios de relação com o além. O tempo que passa se suspendeu, porque é só em solidão de escrita manuscrita que me consigo escrever. Daí o meu silêncio, porque só quando, palavra a palavra, nos conseguimos libertar das teias do pensamento é que podemos dialogar, aqui, em intimidade. E poucas foram as linhas assim manuscritas que foram fluindo. Pelo que importa reaprender o sentido mais profundo deste gesto de sentir a caneta deslizar pelo papel. Não ainda para testemunhar a experiência de uma complexa intervenção cirúrgica e do místico de seu acordar, mas, sobretudo, para reencontrar os equilíbrios primordiais do andar e do escrever em autonomia. Foram os antiquíssimos laços familiares e os de meus irmãos e amigos que me ajudaram a retomar os passos, e a regressar a casa e às comunidades vivas que me dão raiz e sentido. Esse demasiadamente humano do amor inteiro, onde também não faltaram palavras em mensagens. A todos o meu obrigado!
Um pouco de céu que se azula: Nemésio. Por Teresa Vieira
Sempre senti Vitorino Nemésio como um homem despojado e um homem de uma coragem em singelo pela verdade das coisas.
Senti na sua comunicação a problemática açoriana como um local de temática religiosa próxima de uma resistência à compreensão do mistério ilhéu.
Quando o escutava nas suas palestras televisivas, ele surgia-me como alguém pronto a propor um louvor ao entendimento numa expressão verbal tranquila e cheia de presença humana.
Na sua escrita nunca se fecharam as palavras à intenção do mundo, antes a pluralidade de significações das mesmas foram proposta nemesiana do real que somos e que não devemos recusar admitir o quanto o somos, pelo anónimo e pelo quieto.
Havia na comunicação de Vitorino Nemésio uma preocupação pelo querer exprimir eliminando da escrita qualquer contaminação que produzisse hiatos descontrolados ao sentido.
Estas questões são, na minha modesta opinião, bem mais importantes do que se possa crer. Em rigor o incenso da escrita de Nemésio e de toda a sua comunicação constitui sempre o átomo onde sempre um pouco de céu se azula e assim surge a via pela qual o sentimento do poeta ocorre num ritmo que nos leva.
E este é outro dom típico de Nemésio num processo extremo e exemplar.
Vitorino Nemésio foi e é uma lenha diferente, um peso cultural que a tudo está ligado.
Diga-se ainda que Nemésio é organizativo no poema e que une as separações mesmo as que se propunham por razão fabular ao conflito da distância.
Do seu Canto Matinal onde já se imaginaria os gloriosos mas sem porta a que se bata(…) até à necessidade de nomear o mundo com medo de o perder, faz-nos pressentir que muitos foram os dias dos luxos poéticos, atentos à viagem de barco, essa que os embala sempre numa certa ondulação do sem pudor, pois que pertence à inteligência ou à luz que macaqueia a luz perpétua.
Um dia Se Bem me lembro:
Se nós não temos medo de que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: temos sempre presente, como salutar advertência, a sensação de que o mundo é curto, e o tempo mais curto ainda.(…)
Ou no excerto do seu célebre livro Mau Tempo no Canal:
Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da caldeira sentiu-se uma tropeada, depois pó e um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope:
- Slowly! Let go him alone…
E como acrescentava Vitorino que ceifava as manhãs nos cabelos dela e ceifava-os um a um, canal abaixo, obtinha ele directamente o sonho, pois que fazendo as pessoas falar, sonhava o que se dizia pela fala, no empunhar de um silêncio sempre aberto a uma totalidade que só ele sabia mencionar.
Diria que bastou a Vitorino Nemésio um só alento à intuição. E uma doçura: porque o mar antes do meio-dia é sempre Domingo.
M. Teresa B. Vieira
Sábado dia 14
Ano 2010
Sec. XXI
23.9.10
Glosa amiga de Teresa Vieira
E Professor Adelino Maltez
tem razão para acreditar nesse paraíso
pois a eternidade é palpável nos sentires profundos e é benevolente connosco
por via de um feitiço que a poucos abençoa.
Acresce que a eternidade nos olha nos olhos
mesmo nos dias de silêncio
quando
vida e morte são uma mesma realidade escrita no terreno do peito
lavrado pelo mistério afinal tangível
e que sempre nos traz as noticias de algures
de um inexcedível algures.
M. Teresa
22.9.10
Obrigado, Ana!
PS: Um acidente cardíaco suspendeu este blogue. Foram três "bypass" coronários. Vou recuperando. Mas ainda demora.