Heresia por heresia, prefiro a Samaritana ao Dan Brown...
Graças à minha filha Filipa, e já depois das eleições, também eu li o livro de Dan Brown, sobre o "Código Da Vinci", num empréstimo da biblioteca da minha autarquia. Sem preconceitos e sem prévia leitura de recensões, li a coisa de um fôlego, como se estivesse a ver um filme, até porque o texto quase parece um guião cinematográfico. E cheguei à conclusão que tudo se parece muito com o fado da "Samaritana", a tal plebeia que seduziu Jesus. Só depois ouvi, vi e li o Umberto Eco a ter a opinião que subscrevo sobre a matéria: a história de Maria Madalena e do Graal fazem parte das deliciosas patranhas do nosso imaginário, como a Cinderela ou o Pinóquio.
Retoma-se, quase meio século depois, o regime do "best seller" de Pauwels e Bergier, Le matin des magiciens, Paris, Gallimard, 1960, agora num regresso ao anticongreganismo primário, onde, em vez dos jesuítas, surge o "Opus Dei", vulgarizando-se ridiculamente questões maçónicas, gnósticas e panteístas. Reduzir ao ritmo cinematográfico temas como os do simbolismo e do esoterismo, atacar o catolicismo e a maçonaria, pela interpretação das lendas merovíngias, é brincar com o fogo sagrado. Especialmente neste Ocidente onde as bases esotéricas atiram a memória pré-cristã e as heresias medievais para a zona do sincrético das seitas e das macacadas das sociedades secretas, onde, afinal, algumas multinacionais livreiras espetam as garras do negocismo, explorando as nebulosas que circundam a procura da verdade, sem se ir ao fundo das coisas.
Acaba por apelar-se ao vazio da procura pessoal, obrigando muitos a acolherem-se à sombra de explicações transpersonalistas e fazendo dissolver as autonomias individuais no colectivismo moral das seitas e nesse jogo entre o exotérico e o esotérico, de modo que a verdade acaba por dissolver-se.
Importa salientar que quando alguém procura atingir o bem colectivo através do mal individual, em nome da Razão de Estado, da Razão de Seita ou da Razão de Igreja, está a matar-se a si mesmo, ainda que adopte aquela literatura de justificação do realismo político. E todas estas legiões tanto geram os Buiças que matam os reis como promovem os assassinos de Delgado que pensavam estar ao serviço de Salazar. A maçonaria permitiu o 28 de Maio de 1926 quando deixou que a formiga branca entrasse em autogestão. O Estado Novo autorizou o 25 de Abril quando criou condições para que matassem o general sem medo.
Há muitas boas e higiénicas instituições que invocam fins superiores, incluindo o divino, enquanto os respectivos jagunços, inflitrados nos aparelhos do Estado de Direito, brincam ao maquiavelismo, maculando a eventual espiritualidade com que vão recrutando neófitos. E o estampido das crenças, com que muitos vão permitindo as conversões, pode levar a um processo de crescente relativismo e cepticismo, onde acaba por preponderar o mero jogo das bruxarias.
O Senhor Dan Brown nada diz da Ordem de Cristo, do Infante D. Henrique, das caravelas, da política de sigilo e da armilar, nessa viagem, onde, pelo pragamatismo e aventura, os do Velho Mundo criaram o Novo Mundo, onde recriaram muito do espaço sincrético onde assentou o primitivo cristianismo.
Continuo a preferir Umberto Eco e "O Nome da Rosa". Ficamos mais cavaleiros andantes, mais próximos do saber poético, mais amantes do mistério, mais cultivadores do transcendente...