a Sobre o tempo que passa: <span style="font-family:georgia;color:red;">Navegar é preciso, viver não é preciso</span>

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.3.05

Navegar é preciso, viver não é preciso



Aqui e agora, numa estrada deserta, diante da barra do Tejo, de olhos postos num sol que vai pondo a ocidente... As boas instituições, isto é as entidades multisseculares que nos dão o chão moral da história, podem degenerar, especialmente se entrarem em disputa sobre qual delas serve melhor a humanidade e sobre qual delas é que deve ser extinta pela outra. Quando todas elas, se ascenderem ao espírito, podem assumir a dimensão da eternidade. Quando todas elas têm que comungar no simbólico e todos os simbólicos acabam por coincidir nos mesmos sinais, porque todos foram desenhados pela mesma mão, comandada pelo mesmo sonho, pela mesma procura.

Haverá sempre alguém que amanhã estará aqui no seu agora, olhando o mistério desta barra que foi partida para o outro lado do mundo. Haverá sempre navios que partem barra fora, pelo mar dentro, para outro lado do mesmo mundo. Haverá sempre navios que partem daqui para o mais além, à procura de um novo mundo. Que navegar é preciso, viver não é preciso. Haverá sempre navios cheios de gente que não da história que vai escrevendo, porque cada um de nós apenas sonha o seu próprio lugar onde, o seu pequeno e secreto paraíso do direito à felicidade. Não consegue viver quem não tiver a humildade de se sonhar. Navegar é preciso, viver não é preciso.



Procurar o nosso porquê, eis o mistério de viver. Aqui, olhando o mar ao longe e tão por dentro, nesta entrada da barra que nos dá mar. Aqui, nesta praia da Europa de que partimos, de uma Europa que perderá o seu sentido se, voltada sobre si mesma, se esquecer do desígnio armilar que nos deu signo. Aqui, olhando quem sou, diante de mim, diante do mar, enquanto as ondas, breves e distantes, nos vão dando o movimento. Eis o marítimo destino deste telurismo oceânico a que damos o nome de Portugal. Eis quem sou e não sei, eis o sonho de quem sou.

Cuidado, com as falsas chaves que pretendem comandar a ilusão do regresso aos mágicos, para gáudio dos vendedores de ilusões. Também o mundo do imaginário precisa de verdade. O negocismo do falso simbólico apenas contribui para que se reforcem as teias de certo hierarquismo religiosista das igrejas institucionais e para que algumas seitas mantenham a respectiva fechatura, confundindo a espiritualidade com o falso elitismo. Não quero que o Portugal a que chegámos se torne num degenerado herdeiro de um Portugal que já não há.