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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

24.2.05

Os pequeninos desse Portugal com mania de grandezas



A reconstrução da direita em Portugal não passa apenas pela direita. Passa, sobretudo, por sabermos se se cumpre o parecer de Mário Soares sobre a eventual existência de um "povo de esquerda", coisa que foi baptizada por António Barreto para qualificar os adversários da candidatura de Diogo Freitas do Amaral. Até porque, agora, este último passou para a tal esquerda, talvez para compensar a circunstância de, então, certa gente de direita ter votado em Soares. Com efeito, tudo depende do que suceder nesse grande espaço que vai do PS à esquerda revolucionária, um gigante que o mesmo Soares contribuiu para destruir, quando não advogou, felizmente, a ideia de frente popular ou de unidade antifascista, em 1974-1975 e nos tempos em que esteve no poder.

É neste enquadramento que devemos encarar a candidatura de Luís Marques Mendes, visando "recuperar o centro social-democrata", contra a "direita populista", bem como de outro Luís com pronúncia do Norte, o Felipe Menezes, que, mais explicitamente, se diz de "centro-esquerda", defindo como tal o ser "liberal" quanto à economia e à administração pública, mas "social-democrata" no resto.

Há pequenos grandes homens e homens grandes que são pequenos, tal como há Estados Exíguos com a mania das grandezas e aquele Portugal dos Pequeninos onde os bestiais passam rapidamente a bestas e vice-versa. E, às vezes, entre os grandes e os pequenos, há coincidência entre o que parece e o que é.



Começo a não saber entender esta esquizofrenia, talvez por não fazer parte dessa geração que desabrochou para a política e a cultura entre os comícios da AD e os ensaios de Miguel Esteves Cardoso, sob as gargalhadas das anedotas de Herman José e o coloquialismo de Carlos Cruz. Foi talvez por isso que não fui na procissão dos que votaram no Bloco de Esquerda. Por isso, não me incomoda este "radical chic", dado que ele não passa de mais uma manifestação do anterior "yuppismo", daquelas direitas que chegaram a considerar Cavaco Silva como a mera superação sintética desse confronto entre a tese prequiana e a antítese do Bloco Central, liderada por Mário Soares.

Daí que compreenda estas presentes meias-tintas que levaram à opção por José Sócrates e às petrolíferas e cacilheiras figuras que apareceram a sustentar o "granda nóia", no seu prometido combate pela qualificação e pelas ideias. A pátria até repara que, na precisa véspera de um novo governo, os jornais já não especulam apenas sobre os eventuais novos ministros, mas também sobre os futuros gestores das empresas estadualmente influenciáveis. Mas nada dizem sobre aquele ritmo típico do Bloco Central, onde o clube dos gestores publicamente tachados manterá a gaiola dourada para os anteriores ocupantes da primeira fila, desde o subsídio de retirada, aos ricos honorários de consultores, nesse habitual jogo das comadres e dos compadres.




Em Portugal é bem difícil a instauração da weberiana legitimidade racional-normativa, assente na competência, dado que é bem mais forte o lastro do patrimonialismo feudal (naquilo que se chama neo-corporativismo) e do seguidismo carismático, assente no fidelismo aos líderes,nesse sucedâneo de cristianismo que manda fazer aos adversários aquilo que se deseja que os adversários nos façam, o não-despedimento. Daí esta proliferação de viúvas de ausentes-presentes e de órfãos de desaparecidos em combates eleitorais, mas que continuam a manipular a escolha dos sucessores.

É tempo dos sacristães que perderam o sentido dos gestos, dos "porta-chaves" de anteriores líderes, daqueles que Belmiro de Azevedo não queria para contínuos da SONAE. Os mordomos das grandes lideranças de outrora apenas servem para que se oculte a coisa. O poder efectivo não circula pela face visível das candidaturas que em breve passearão pelos palcos da nossa teatrocracia partidocrática. Manda, não quem apareça em tais encenações, mas quem maneja os fios invisíveis dos financiamentos, das garantias de emprego e da capacidade de controlo do "agenda setting" do mediatismo. Os actores ou criaturas das peças aparentes apenas demonstram que há autores e criadores. Isto é, os que escolhem novos figurantes do presente Estado-Espectáculo, para que se continue a representar o mesmo guião de sempre, dado que todos procuram oleadas comunicações nesse submundo que vai da classe política à classe banco-burocrática, onde são activas várias cortes de fiéis, dos cavaquistas aos soaristas, onde se demonstra como "os amigos são para as ocasiões".


É nesta altura que entram em acção os grandes bispos "kingmakers", esses especialistas em manutenção no poder, que fazem o telefonema certo no momento oportuno, deixando o adequado parabéns ou a sentida solidariedade, para que se possa manter o necessário fluxo de rendimentos, especialmente dos que não se declaram fiscalmente. Aliás, a tradicional medida do poder em Portugal sempre passou pela eficácia da cunha no reino da empregomania.

O espaço de influência dos donos do poder assenta assim naquela zona que se recobre com a eufemística designação das "amizades", sob as quais se escondem as redes neofeudais do tráfego de influências e das encomendações. O que constitui a melhor prova quanto à ausência, em Portugal, daquele mínimo de igualdade de oportunidades, de reconhecimento do mérito e da consagração dos princípios da justiça, com a consequente porta aberta para a corrupção, a falta de competitividade e a total falha de organização do trabalho nacional.