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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.11.05

Da minha varanda da Junqueira, ao cair da tarde



Neste dia de São Martinho e de seu Verão, apetece pensar e repensar o que neste blogue tenho escrito. Estes escombros em que vou esboçando uma colecção de pequenas reportagens íntimas com que quero reflectir uma breve peregrinação interior pelas sensações de uma viagem à volta das minhas circunstâncias, onde o sujeito escrevente não é apenas uma simples placa registadora das ocorrências, nem quer transformar-se numa máquina de projectar preconceitos e ideias feitas sobre esse terreno que vai calcorreando.

Desejei apenas escrever ao sabor das ondas da realidade, descrevendo as sensações por que fui passando, tendo, sobretudo, a intenção de perder-me na multidão das coisas e das gentes que acontecerem. Continuo sem saber de onde venho, nem para onde vou, mas, aqui e agora, permaneço em espera.



Assim, estes escritos, se, por um lado, são marcados por quem, dentro da pátria, em pleno exílio, foi cultivando a revolta política e social, sofrem também daquela nostalgia típica dos que, não tendo perdido o sonho, sentem o corpo sitiado pelas realidades de uma pátria que já não há e pretendem expatriar-se a partir das suas próprias origens.

Acima de tudo, preciso de intimidade, de um qualquer cantinho para me escrever assim em directo, só se concretizaram porque, entre o acto de escrevê-los e o de publicá-los, mediou o simples tempo de um clique que os foi lançando mundo fora, numa forma de comunicação quase imediatista, mas ligada necessariamente ao arquivo do eterno, que cada nómada guarda dentro de si.



Como os mestres de Quinhentos, também tentei seguir os ditames da singela linguagem dos olhos de que falava Pêro Vaz de Caminha, procurando ser fiel ao dito de Duarte Pacheco Pereira, segundo o qual a experiência que é a madre de todas as cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira.

E assim começo a libertar-me, a querer escrever o sentimento, a sentir a liberdade de poder pensar-me, a aperceber-me que, cá dentro, há alguma coisa que apetece segredar aos outros. É tão longe o sítio para onde vou, nesta viagem que demora, é tão longe, tão fora de mim.

Aliás, sinto que faço parte daqueles grupos que são objecto de uma conspiração de silêncio, só porque não gostam de beber nas fontes das intelectualices que estão na moda. Até porque os cultores da opinião dominante têm toda uma plateia que vai transformando as frustrações em vulgatas e palavras de ordem, nesse pretenso contra-poder que não passa do mais extremado dos situacionismos, filho do iluminismo pombalista, adorador de positivismo serôdio e saneador dos que não seguem os catecismos da seita ou não bajulam os pretensos grão-mestres do pensamento único.

A casta dos intelectuais é, com efeito, uma balança sem fiel, deusa ou espada, onde todos os pesos da pressão apenas pendem para um dos lados, querendo transformar o que resta do Portugal-que-pensa-pensar numa simples colónia cultural da estupidez de uma sub-Europa de exportação para as bolsas terceiromundistas das respectivas periferias.

Aliás, o próprio jornalismo de ideias constitui uma das primeiras cabeças do chamado quarto poder, procurando configurar-se como uma nova espécie de catedratismo, desse que, outrora, foi representado pelas universidades. Até se aliou à chamada cultura empresarial, medida pelos padrões da compra, esse parecer a que falta o ser e que acaba por ser medido pelo ter.

E todos representam o que de mais vácuo há nessa ponte do tédio que vai do poder para a cultura, constituindo uma forma suave e gaguejante daquilo que têm os Maxwell, os Murdoch e os Berlusconi, esses que, vendendo mistelas de pornografia e análises de política internacional, conseguem marcar o ritmo dos que pensam pensar.

Surgiu assim um estranho pensamento em Portugal que nada tem de enraizadamente português, ou de qualquer outra pátria, constituindo a principal via de uma nova forma de colonização cultural e empobrecimento identitário. E não haverá nenhum manifesto anti-Dantas, capaz de proclamar revolta, nem ninguém capaz de dizer que o rei vai nu. Não!



Porque o situacionismo nos vai suicidando, através do avivamento daquelas incomensuráveis distâncias que continuam a separar o país político do país real. Isto é, Portugal vai ficando cada vez mais estreito, cada vez mais fechado sobre fantasmas, cada vez mais prisão, sobretudo para quem gostaria de sentir que a liberdade pode rimar com o bom senso.

Mesmo aquilo que por outros já foi pensado tem que ser, por nós, repensado, para lhe acrescentarmos a mais valia do actualismo, ou o estampido do viver, dando-lhe a realidade das circunstâncias e o sopro do nosso próprio eu. Sem essa fluidez de vitalismo não haverá verdadeiras correntes de pensamento e apenas continuaremos a rastejar nesta unidimensionalidade acrítica e não criativa, onde nos vamos estupidificando.

Sem imaginação não haverá efectiva razão. A palavra é sempre um rio que procura a sua foz desde que brota da nascente. Porque a palavra corre o texto em seu discurso, sem margens que a contenham ou represas que a proíbam. E apetece ser como as águas de uma vida à procura do sentido.