a Sobre o tempo que passa: O país dos avençados. Manda quem pode, obedece quem deve. Ou o poder do saber comprado...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.12.06

O país dos avençados. Manda quem pode, obedece quem deve. Ou o poder do saber comprado...



Vou transcrever uma notícia curiosa e pouco politicamente correcta : O Governo de José Sócrates prevê gastar no próximo ano mais de 95,4 milhões de euros em estudos, pareceres, projectos e consultadorias. Este ano só os gabinetes dos ministros dispunham de uma verba de 4,4 milhões de euros para esta rubrica. O gabinete do ministro da Administração Interna, António Costa, é mesmo um dos mais gastadores com um montante de 628 652 euros. Já no próximo ano, segundo o Orçamento de Estado para 2007, o Ministério da Administração Interna conta com uma verba superior a 3,7 milhões de euros para a realização de estudos e pareceres. Mas no ‘ranking’ dos Ministérios mais gastadores, o primeiro lugar é ocupado pelo Ambiente, com uma verba de mais de 25 milhões de euros, seguido da Ciência com mais de 17,5 milhões de euros.

As Obras Públicas ocupam o terceiro lugar com um montante superior a 14,6 milhões de euros, seguido da Justiça com 8,2 milhões e da Economia com 6,2 milhões. Já as Finanças soma uma verba de 4,4 milhões de euros e a Segurança Social de 4,2 milhões. Com valores abaixo dos da Administração Interna ficam assim a Saúde (3 milhões de euros), a Agricultura (2,6 milhões), os Negócios Estrangeiros (1,9 milhões), a Cultura (1,7 milhões) e Educação (1,1 milhões). O Ministério da Defesa ocupa o último lugar da tabela, com 675 384 mil euros.

No total, a verba do Governo para estudos e pareceres em 2007 é superior a 95,4 milhões de euros.



Vou fingir que não sou professor catedrático de uma universidade pública lusitana e clamar por uma política de transparência que nenhum governo será capaz de pôr em prática: dêem-nos a lista dos consultores escolhidos, com nome posto no "Diário da República". Mais: entreguem imediatamente todos esses pareceres a todos os restantes órgãos de soberania e aos partidos institucionalizados da oposição, como se faz em muitos países democráticos, a começar por Espanha.

Julgo que deste modo todo o povo entenderia melhor o crescente neocorporativismo e neofeudalismo. Haveria um mínimo de "glasnot" e poderíamos pensar na "prestroika". Até seria interessante, para se detectarem as variações de humor de alguns desses avençados que também são "opinion makers". E o silêncio dos que são à segunda-feira são professores universitários, à terça-feira consultores de privados, à quarta de clubes desportivos, à quinta de partidos e à sexta de si mesmos. Qualquer politólogo sabe de ciência certa, sem qualquer poder absoluto, que tal tipo de actividade é eventualmente parcela de um conceito de pressão, bem próxima daquilo que outros indicam como compra do poder. Se a actividade de professor público e de exercício de saber fosse mesmo poder.



Claro que, apesar de se controlarem as acumulações de professores públicos em instituições privadas, estas formas de actividade privada nunca foram controladas nem no âmbito dos registos obrigatórios de interesses. Manda quem pode, obedece quem deve.

Por mim, confesso que sempre rejeitei a actividade, apesar de algumas vezes convidado. Fiz duas análises políticas para o gabinete do ministro Marques Mendes no tempo do cavaquismo e não quis receber nada nem continuar na coisa. E rejeitei dar parecer sobre planos da água e reforma das prisões com governos socialistas. As muitas outras consultas que tenho dado, ou são públicas, nomeadamente para a comunicação social, ou são institucionais e gratuitas, no âmbito institucional. Julgo que tal exercício intelectual, numa "res publica", deveriam ser incluídas no âmbito da prestação de serviços à comunidade, a cargo das universidades e não sei se foram incluídas no parecer da OCDE sobre a coisa, ou objecto de uma recomendação do Conselho de Reitores. Por isso é que gostaria mesmo de ser funcionário público ou de ser trabalhador de uma fundação que transformasse essa nobre actividade numa receita própria das universidades. Aprendi isso com o meu mestre Guilherme Braga da Cruz que até o trabalho como jurisconsulto do Estado Português no Tribunal da Haia foi considerado serviço do bem comum e da função. E assim me liberto de futuros convites para membro de júris em determinadas escolas...