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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.3.07

Contra os excessos de identitário, que tal o gesto do Zé Povinho?

Anteontem, lá voltei à TSF para comentar o estudo do ICS sobre o orgulho do nosso propalado identitário. Bem tentei dizer que já éramos nação antes de haver nacionalismo, que é coisa só desencadeada depois da revolução francesa, quando, pela escola única e pela via da mobilização militar, se construiu a partir do centralismo capitaleiro, tal como já éramos independência política antes de Maquiavel ter baptizado o Estado a título póstumo, em 1531, e antes de Bodin ter delineado o conceito que o sustenta, a soberania, em 1576. Aliás, em 1648, quando Vestefália pôs o Estado Moderno no mapa da Europa, andávamos em guerra contra a Madrid dos Áustrias e do Papa, entre 1640 e 1668.

Apenas notei que, com tanta discussão sobre a identidade e tantos concursos sobre os melhores portugueses de sempre, apenas mostramos à saciedade que com esta carga de oito séculos e meio de história, desde a declaração unilateral de D. Afonso Henriques em 1140, ficámos com expectativas acima das nossas potencialidades e vamos padecendo de esquizofrenia, onde o principal sintoma é este nosso actual Portugal dos pequeninos com a mania das grandezas, típico de um desviacionismo, daquilo que Eduardo Lourenço qualifica como hiper-identidade.

Sumariamente, referi que as nossas permanecentes virtudes, especialmente esse misto de pragmatismo e de aventura da procura do paraíso, é exactamente o contrário daquilo que marcou a ascensão e triunfo do capitalismo. Como dizia Jaime Cortesão, na península hispânica, se "nuestros hermanos" são o D. Quixote, nós parecemos o Sancho Pança, entre o Oliveira de Figueira das aventuras de Hergé e o emigrante de lápis atrás da orelha, como somos retratados nas anedotas dos brasileiros sobre os lusitanos que, depois de 1975, traduzimos para anedotas de gente do Norte sobre os alentejanos.

O problema não está na identidade, na soma da memória com valores, mas o termos entregado a nossa autonomia à gestão do senhor Estado, que sempre foi uma coisa estrangeira, no sentido de estranha à Nação, até porque não temos sabido nacionalizar essas tendências importadas, a não ser com a interpretação regeneradora e histórica da Carta Constitucional pelos liberdadeiros.

Esta nossa mania de ficarmos entalados entre o tudo e o seu nada, se nos levou a uma das primeiras revoluções liberais da Europa, também produziu a permanência inquisitorial, das moscas do intendente aos pides e bufos de Salazar, para não falarmos nos formigas do Afonso Costa. Da mesma forma, também nos iludimos em ser a terceira república da mesma Europa, em nome do bacalhau a pataco, para, depois, voltarmos durante quase meio século ao autoritarismo despótico da negação da política, protegidos por um pretenso pai, patrão ou dono. E se assumimos a liderança da third wave od democracy (Huntington dixit), lá andamos em busca de sucessivas encomendações feudais e diluídos no ambiente desta fragmentação da compra do poder, a que dão o nome de corrupção.

Vale-nos que Paulo Portas ameaça regressar, do mesmo modo como Pedro Santana Lopes e que vamos brincando às assembleias gerais do capitalismo, neste jogo de taça de Portugal entre a PT e a SONAE, com Berardo a jogar contra o Belmiro, onde o primeiro representa a cultura da compra de quadros e o segundo, a comunicação social e os hipermercados, dado que gosta apenas de homens ordinários, porque os outros ou são malucos ou são incompetentes, onde quem não está por mim está contra mim e, portanto, tem que ser demitido ou internado no pelourinho ou numa clínica psiquiátrica.

Oito séculos e meio de história mitificada e mistificada são pesadas algemas que nos deviam ajudar a libertar destes meandros de ditadura de sucessivas incompetências, onde nos obrigam a escolher entre males menores. Por mim, prefiro o símbolo do Zé Povinho, mantenho a garra da Patuleia e estou disposto a fazer-lhes o gesto adequado do "Toma".