Contra a salazarquia, os salazarinhos e o salazarentismo
Anteontem, fui convidado, por sugestão de Baptista Bastos, para, no RCP, dar o meu testemunho sobre a falta de auto-estima dos portugueses, onde, utilizando os números do recente inquérito social europeu, lá observei as nossas contradições, entre o teoricamente prático e o praticamente teórico, onde, na prática, a teoria é outra.
Apesar de ultrapassarmos os noventa e cinco por cento de cidadãos que se dizem católicos, os chamados católicos praticantes não passam de 25% e, destes, ainda há uma fatia significativa que já não obedece aos apelos da hierarquia, quando se trata de votos em referendos. Aliás, julgo que, na prática, só há 5% de gente da esquerda praticante e outros tantos da direita, também praticante, ficando os restantes dependentes, não da manipulação da opinião pública, mas do que lhes interessa em termos de manha. Porque, entre a nossa mistura criativa de pragamatismo e aventura, o pragmatismo acaba por superar o sentido de aventura e quase todos reconhecem que a maioria dos portugueses à solta foi emigrando ao longo dos tempos.
Basta passar os olhos para as grandes parangonas de hoje, entalados que estamos entre um Fontão da autarquia da capital, que era arguido há um mês, mas não o dizia, e o jogo do gato e do rato entre Maria José Morgado e o senhor Pinto da Costa. E o desencanto continua se passarmos para os temas mobilizadores dos blogues, onde grande parte dos meus amigos discute Salazar, por causa de um concurso televisivo que o coloca como o melhor português de sempre, enquanto outro concurso, da estação rival, o atira para o preciso inverso.
Mas nada posso dizer sobre o programa onde o meu amigo e colega Jaime Nogueira Pinto, com toda a coerência, defendeu o ditador, porque não quis mesmo ver a coisa, para não me irritar com o brilhante apologeta de uma figura que, muito liberalmente, detesto e contra a qual tenho muitos fantasmas e outros tantos preconceitos, até pelo que aconteceu a alguns avoengos meus, presos e condenados num processo político a que um tribunal militar especial deu guarida.
Prefiro notar esta explosão de salazarinhos que vai proliferando à esquerda e à direita, em plena democracia geneticamente anti-salazarista, neste regresso ao ambiente mental salazarento, para dizer que me apetecia ser mesmo um português à solta e continuar a procurar Portugal fora de Portugal. Temo apenas que regressemos à tal salazarquia de que falava Hipólito Raposo, que era monárquico e tudo: A salazarquia é um regime de constrangimento que oprime a vida do espírito em Portugal, provocando a dissolução moral que diariamente vamos assistindo.
Porque a II República do Estado Novo foi a eternização do provisório, algo de ilógico, onde reina uma ordem à maneira sepulcral dos cemitérios (Alberto Monsaraz, também monárquico). Porque Salazar e o regime cometeram o monstruoso erro psicológico de quererem governar este povo com... método geométrico, coercitivo e glaciar, levando a uma rotura no parentesco dos portugueses (Afonso Lopes Vieira, idem).
Um governo autoritário, que vive à custa do silêncio dos adversários e nega os direitos do cidadão pode impor-se num país de escravos, nunca a um povo que teve de lutar com extremos de bravura para fundar a sua independência e expandir-se no mundo. Nada de um português do velho cerne pode perdoar do que reduzirem-nos à condição de menor (Jaime Cortesão, republicano e democrata).
Julgo que foi liquidado o ambiente de confiança e de respeito pela palavra dada, o que, de acordo com a soberana avaliação individual, me coarcta a possibilidade de assumir, pela realização consensual, a capacidade de sonho, onde a ideia de obra, as regras de processo e as manifestações de comunhão geraram a ilusão de regresso à clássica via da teoria institucional, assumida pelos institucionalistas que acreditam que as criaturas se libertam dos criadores e sabem que “os cemitérios estão cheios de pessoas insusbstituíveis”.
Talvez importe permitir que a crueza da realidade se manifeste, para confirmar que chegámos a um momento de encruzilhada, onde só podem actuar e liderar aqueles que põem a ética da responsabilidade acima da ética da convicção, conforme os modelos da politiqueira razão de Estado, isto é, os que consideram como meramente instrumentais os princípios clássicos das instituições, conforme acima sumariei.
Entrámos definitivamente no habitual modelo das “guerrazinhas de homenzinhos” e mulherzinhas, para parafrasear Eça, onde todos perderemos, incluindo os vencedores, dado que continuamos a flutuar ao sabor de discursos celestialmente demagógicos dos que, até agora, têm mantido esta confusão entre o poder e o saber, onde todos podem inventar lendas e narrativas, nesses factos que não se confundem com a interpretação dos factos, dado que domina um ambiente de desconfiança, feudalização e quebra da ideia de autoridade, onde esta vem de autor e não dos autoritarismos burocráticos, incluindo os electivos.
Isto é, estão abertas as portas à bagunça e aos inevitáveis “césares de multidões”, mesmo que seja um movimento de massas de pretensas elites. E seria melhor acabar com o medo, fazer casar a honra com a inteligência. Porque tentar superar a crise com a criação de ligações de encomendação feudal ou propostas de troca de serviços protectivos é apenas adiar o inevitável processo de “out of control”, propício à inevitável ingerência de potências estranhas à nossa autonomia.
Todas as frases que nos hão-de salvar já estão todas escritas, há muitos candidatos a salvadores, mas, na pátria, continua a falta de razão e de emoção, de entusiasmo e pensamento, de ciência e pedagogia, de honra e de inteligência, das tais emergências da lei da complexidade crescente que permitam salvar mesmo a pátria, mantendo a democrática institucionalização dos conflitos e as consequentes convergências e divergências das coisas vivas e dos sistemas abertos.
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