a Sobre o tempo que passa: 25 de Abril, sempre, contra os escribas dos sucessivos "Anais da Revolução Nacional"

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

26.4.07

25 de Abril, sempre, contra os escribas dos sucessivos "Anais da Revolução Nacional"

Os regimes, em Portugal, caem de podre porque, muitas vezes, ultrapassam todos os prazos de validade que lhe garantiam autenticidade. Só que a apatia e o indiferentismo gerados pelas manobras da elite no poder, lançam o colectivo numa inércia cobarde, inversamente proporcional ao activismo dos oposicionistas, cujo vanguardismo, marginal face à opinião pública, resulta, precisamente, da frustração de não se sentirem, entre ela, como peixe na água.

No plano das consequências, o golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, que Costa Gomes, no plano operacional qualificará como um acaso cómico, é uma espécie de libertação da mola desoprimida que se partiu, para utilizar-se uma expressão de Fernando Pessoa.

É que, como Salazar tinha confessado a António Ferro, o povo português é bondoso, inteligente, sofredor, dócil, hospitaleiro, trabalhador, facilmente educável, culto, mas excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção e de tempos a tempos assiste-se ao fenómeno de nascimento de certas ondas de pessimismo, dessa ânsia de deitar tudo a perder, não se sabe bem porquê, porque sim, desejo infantil de variar, de mudar, de quebrar o boneco para ver o que tem dentro.

Abril é, sobretudo, essa descompressão, inicialmente gerida por uma Junta de Salvação Nacional, donde emerge um Presidente da República, o General António de Spínola, um Governo Provisório e um Conselho de Estado, tudo em nome de um programa do MFA que promete a democracia política pluri-partidária, um desenvolvimento socializante e uma descolonização com autêntica autodeterminação das populações coloniais, admitindo-se tanto a plena independência como a própria permanência na área da soberania portuguesa. Só que o programa é rigorosamente vigiado por uma comissão coordenadora dos jovens oficiais que haviam corporizado o golpe, divididos entre os operacionais, como Otelo Saraiva de Carvalho, e os mais intelectuais, como Melo Antunes, e, além disso, há o povo inorgânico, os homens da comunicação social e da cultura também comunicacional, os restos da oposição clássica e os movimentos políticos nascidos nos crepúsculo do regime, entre estudantes e sindicalistas politizados.

Digamos que nesse dia de 1974 nos vimos livres de um regime que havia sido montado por um avô autoritário, ao estilo do pai tirano, para, depois de algumas cenas de violência familiar, chegar o tempo da geração do pai modernaço e bon vivant, muito viajado, que não tinha problemas de abrir as janelas, porque resistia às correntes de ar. Por isso é que, a certa altura, no fim da década de oitenta, os membros da família, fartos dos laxismos desse pai modernaço, que não gostava de ler dossiers e que até meteu a ideologia na gaveta, pediram ajuda a um tio austero, que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava. E é ele que trata de pôr ordem no orçamento, pinta a casa e arranja os caminhos e as cercas do quintal. Por outras palavras, como dizia Ortega y Gasset, todas as revoluções são pós-revolucionárias. Medem-se menos pelas intenções dos primitivos revolucionários e mais pelas acções dos homens concretos que fazem a história, sem saberem que história vão fazendo. Porque, na prática, a teoria é outra...

Vai, a partir de então, viver-se a euforia. Libertam-se os presos políticos. Deixa de haver censura prévia. Regressam os exilados. Surgem à luz do dia os partidos políticos. Álvaro Cunhal atravessa a cortina de ferro e chega de avião ao aeroporto da Portela. Soares vem de Paris, de comboio, e desembarca na estação de Santa Apolónia. Cunhal emociona-se na frieza de ter que cumprir o papel de Lenine. Soares, sem papel, é demagogo, fala em democracia, mas logo clama pela necessidade do fim da guerra. Os portugueses acordam estremunhados de um sono forçado que teria quase meio século de censuras, proibições e repressões. Embriagam-se colectivamente com liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação. Com liberdade e libertinagem. Há comícios, manifestações de apoio e de repúdio, bem como mesas redondas que debatem o que até então haviam sido os livros proibidos, os filmes proibidos, as palavras proibidas. Todos correm à procura de um tempo que julgam perdido, sonhando viver em poucos dias o que outros povos polidos e civilizados haviam levado décadas a germinar e a consolidar.

São castelos de palavras recortadas dos manuais de um pensamento petrificado, teorias, "slogans", fraseologias, palavras cheias de letras amontoadas à toa, discursos, palavras cruzadas, num qualquer xadrez sem regras. De madrugada chegara o sonho há tanto esperado, a hora da liberdade, o país da emoção, finalmente recuperado. Abril ressoa a nevoeiro feito aurora, é a revolução de um Portugal mais inteiro, com justiça, com primavera, com nação de corpo vivo. E para muitos, até Spínola se assume como o condestável da lusitana antiga liberdade, ao sinal do antes quebrar que torcer, nesse dia que parece de ressurreição, onde soldados nos dão crenças, horas de sonho, com liberdade e com pão. Quebrando as algemas da tirania, parece que regressa o Portugal marinheiros, dos heróis do mar, do nobre povo, da nação valente e imortal, gritando às armas, às armas da libertação, sobre o silêncio das praias desertas com direito a azuis infinitos. Quase parece que voltam o Quinto Império, as baladas de Bandarra, a Mensagem de Pessoa, as profecias de Vieira, a luz vencendo a bruma, com Camões regressando, numa mão a espada, na outra, a pena. Porque ainda ontem era o triste dedilhar das guitarras, quartos escuros em mansardas e as janelas saudosas sobre os telhados de uma cidade morta, a lua escondida, por trás das chaminés, restos de chuva nas ruas e alguém escondido, à luz dos candeeiros, enchendo folhas brancas de palavras negras, palavras que só ele um dia poderia ler. Agora, a rádio vai trazendo novas de liberdade, diz que os tiranos foram libertados e canta liberdade em hino nacional, tudo parecendo voltar a ser o Portugal-missão. O desencanto seguirá dentro de semanas.

O capitão Salgueiro Maia, em pleno Largo do Carmo, de megafone em punho, anuncia o fim de alguma coisa que qualifica como o Estado a que chegámos. Marcello Caetano quer entregar o poder a Spínola para que não caia na rua, manda Pedro Feytor Pinto ter com Maia, mas este diz que é preciso pedir autorização ao PC, isto é, ao posto de comando do MFA, instalado no quartel da Pontinha, onde funciona a coordenação da movimentação golpista. Feytor Pinto ainda pergunta: quem manda aqui? Respondem-lhe que mandamos todos. Questiona, depois, sobre quem é o mais graduado, mas a resposta de Marques Júnior, Manuel Monge, Otelo, Pinto Soares e Vítor Alves é simples: somos todos capitães.

Contraditoriamente, a Junta de Salvação Nacional retoma o golpismo institucional do reviralho, bem como o próprio sentido hierarquista, como havia sido expresso pela Abrilada de 1961. Mas o movimento dos capitães, em nome da legitimidade revolucionária, acaba por dominar um equilíbrio instável entre esses dois pólos, chegando-se a uma espécie de solução de compromisso, como acontece quando os capitães e majores se transformam em brigadeiros e generais arvorados, enquanto durasse a situação transitória do processo revolucionário em curso. Mas, nos interstícios da inexperiência política, começam a predominar os partisans das células de alcatifa, com que o PCP oleara os mecanismos das chefias militares e com quem Costa Gomes sabe dialogar.

Só que, na rua, a extrema-esquerda, decide lançar o grito de nem mais um soldado para as colónias, clamando contra o exército colonial-fascista, incendiando um rastilho que vai levar à inevitável quebra de comando de um país que, apesar de pensar-se em festa, continua em guerra. E, no teatro das operações, algumas tropas logo começam a abandonar os aquartelamentos e a dirigir-se para os principais centros de concentração urbana, desertificando a quadrícula do interior e desguarnecendo as fronteiras da Guiné, de Angola e de Moçambique. Misturando-se a inevitável quebra de vontade de combater com alguns sentimentos anti-coloniais, gera-se a principal contradição do processo, dado que as forças no terreno não podem esperar pela decisão do comando do processo. O ambiente de vivório e foguetório propaga-se até àqueles que estão destinados a conter a guerrilha e as tropas portuguesas começam a confraternizar com os antigos adversários.

Os inúmeros projectos político-partidários obedecem quase todos ao mesmo ritual. Em dois ou três meses há que fazer o que noutros países levou décadas. E tudo num ambiente de slogans


No dia 1 de Maio, multidões invadem as ruas e as praças e os cravos vermelhos consolidam-se como símbolo de um tempo novo, ao som dos discursos de Mário Soares e Álvaro Cunhal. O povo explode em manifestação organizada pelo espectáculo das palavras de ordem, com um Zé povinho a vestir-se de mariana reivindicativa, confundindo a revolução com uma grande festa. Cunhal e Soares tentam liderar o movimento de rua e juntam-se no antigo Estádio da FNAT, em Lisboa. Soares volta ao verbalismo demagógico e clama roucamente contra o governo fascista e colonialista de Marcelo Caetano, dizendo que foi hoje e aqui que destruímos o fascismo, arengando contra o baronato político-corporativo e os agentes do imperialismo estrangeiro. Cunhal, mais calculista, julgando repetir Lenine e o livro do processo histórico, fala na revolução do 25 de Abril e apela para a unidade da classe operária e das forças democráticas, clamando contra a guerra. E, num gesto ensaiado, termina o discurso abraçado a um marinheiro e a um soldado, desprezando a tal unidade antifascista das forças democráticas. Pereira de Moura fica ao lado e de lado. A transmissão em directo do espectáculo do povo unido começa engasgada nessa cena de palco, bem ensaiada.
É uma liberdade condicionada e rigorosamente vigiada pelo aparelho militar revolucionário. Fartávamo-nos de opiniões, de opiniões de muitos outros, que não é a opinião que cada um tinha, mas a opinião que convinha e que todos fingiam ter, mesmo quando não a tinham. Porque todos temiam quem eram, donde tinham vindo ou para onde iam. Porque todos tentavam ser o equilíbrio das aparências que a hipocrisia social impunha.

Às quatro da tarde do dia 9 de Setembro de 1836 desembarcam no Terreiro do Paço, os deputados oposicionistas do Douro e da Beira, vindos no vapor Napier. São esperados por uma manifestação de cerca de 6 000 pessoas, num ambiente de vivório e foguetório, animado por bandas de música.

Cerca das nove da noite batalhões da Guarda Municipal concentram-se na Praça do Príncipe Real (então Patriarcal Queimada) e, com a populaça, os insurgentes dirigem-se ao Rossio onde dão vivas à Constituição de 1822. Pouco antes em Espanha (12 de Agosto), uma revolta em Madrid tinha obrigado Maria Cristina a repor a Constituição de Cádis de 1812. Tropas do Governo, chamadas para reprimir a sedição, logo confraternizam com os revoltosos. Uma deputação destes entrega um ultimato à rainha nas Necessidades, sendo escolhido, para a liderar, face à recusa de Sá da Bandeira, o conde de Lumiares. Na reivindicação apresentada à Rainha, redigida por Soares Caldeira, consta a imediata proclamação da constituição de 1820 com as modificações que as cortes constituintes julgarem por bem fazer-lhe. O Conselho de Estado sugere à rainha que se submeta às movimentações e às oito da manhã já desfilam os vencedores com louros nas espingardas, depois das hortênsias de 1832 e dos cravos de 1974.

Saldanha regressa a Lisboa, vindo de Roma, sendo esperado e saudado por uma multidão de cerca de seis mil pessoas, com vivório, foguetório e bandas de música (4 de Julho de 1865).

Na noite de 26 de Janeiro de 1914, Afonso Costa promove cortejo de apoio aos democráticos, com o tradicional vivório e foguetório, onde não faltam filarmónicas e um balão à veneziana; a manifestação é dispersa por oposicionistas com cenas de pugilato no Rossio. Bandos de formigas pretas chegam a cercar o jornal O Mundo. Segue-se manifestação oposicionista nocturna, do Largo de Camões para Belém, organizada por Machado Santos, Júlio Martins, Carlos da Maia e Rocha Martins, onde se exige a queda de Afonso Costa, amnistia para todos os presos políticos e reabertura das associações sindicais encerradas. Entram na manifestação sindicalistas armados de archotes, a partir da Avenida 24 de Julho. Almeida e Camacho recusam participar e os comerciantes de Lisboa não fecham as portas.

Gomes da Costa toma posse como Ministro da Guerra e interino das Colónias, juntamente com Felisberto Pedrosa, nomeado no dia anterior (7 de Junho de 1826). Continuam sem ocupação os lugares de ministro das finanças, devido à renúncia de Salazar, bem como o do comércio e comunicações. No mesmo dia, Parada da Vitória na Avenida da República, com 15 000 homens. Assiste o corpo diplomático. Rocha Martins confessa que, nesse dia, estando perto de Sinel de Cordes, durante o desfile lhe diz: que bem que fica o Gomes da Costa a cavalo. Sinel, entre risadas dos que assistem à cena, responde: oxalá se aguente muito tempo no selim.

A besta continuou a cavalgar-nos durante meio século, devido aos sucessivos escribas dos Anais da Revolução Nacional.