A nova queda dos anjos, dos temperamentais aos papudos
Por isso, fui reler o romance de Camilo Castelo Branco, A Queda de um Anjo, de 1886, onde se satiriza a classe política de há cento e vinte e um anos. Deixei de ler as fichas escolares e as fichas parlamentares de José de Sousa, porque notei que ele sempre teve exclentes notas quando tinha tempo para estudar e que, desse brio transmontano e beirão, ficou a garra que sempre tem manifestado, bem como alguns excessos de menino temperamental, com que simpatizo e que não deixo de qualificar como atitude de gajo porreiro.
Mas prefiro a obra de Camilo, onde se narram as aventuras do deputado Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas que, nascido em 1815, é eleito deputado com 44 anos, por Miranda do Douro, quando nas Câmaras havia três deputados legitimistas e os liberais estavam na oposição. Ele que era santo homem lá das serras, o anjo do fragmento paradisíaco do Portugal velho caiu.
Caiu o anjo, e ficou simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens, depois dos antigos companheiros miguelistas lhe chamarem liberal e até acérrimo, ele logo respondeu: estou português do século XIX, no rumo em que o farol da civilização alumiava com mais clara luz. Disse que escolhia o seu humilde posto nas fileiras dos governamentais, porque era figadal inimigo da desordem, e convencido estava de que a ordem só podia mantê-la o poder executivo, e não só mantê-la, senão defendê-la para consolidar as posições, obtidas contra os cobiçosos delas. Reflexionou sisudamente, e fez escola. Seguiram-se-lhe discípulos convictíssimos, que ainda agora pugnam por todos os governos, e por amor da ordem que está no poder executivo.
Depois de se enlevar nas delícias de França de se flagelar na ciência moderna e na leitura de livros modernos e fechado o triénio da legislatura, foi agraciado com o título de barão de Agra de Freimas, e carta de conselho. Sondou o ânimo de alguns influentes eleitorais de Miranda para reeleger-se pelo seu círculo. Disseram-lhe que o mestre-escola lhe hostilizava a candidatura, emparceirado com o boticário. Arranjou o barão dois hábitos de Cristo, que fez entregar com os respectivos diplomas, aos dois influentes. Na volta do correio foi-lhe assegurada a eleição, que, de mais a mais, o Governo apoiava.
Os novos anjos, vindos de Fafe ou da Covilhã, que nos continuam a tratar como anjinhos, apesar de sermos cada vez menos papudos, mesmo quando são vítimas das tais insinuações onde foram crescendo, não deixam de usar o esquema da insinuação, como o Primeiro-Ministro ontem fez quanto à blogosfera, assim se confirmando o que realmente pensa sobre o choque tecnológico e a sociedade do conhecimento. Como outros o poderiam fazer há cento e vinte e um anos quanto aos que escreviam em jornais ou, há vinte e cinco séculos, sobre os que apenas escreviam, como homens livres, sobre as coisas políticas, nomeadamente os que ainda hoje estão mais interessados na questão da constituição de Atenas, ou no referendo sobre o futuro tratado constitucional da casa comum onde é supremo institucional Durão Barroso e para onde também se diz que serão consensualizados Álvaro Vasconcelos e o professor doutor Vital Moreira, assim reforçando, e bem, a presença portuguesa nas elites dirigentes do OPNI.
Digo que Sócrates continua a ser o mesmo artista comunicacional que nos deslumbrou quando emparceirava com Santana Lopes nos comentários televisivos. Repito o que, aqui, na blogosfera e nos jornais escrevi, quando ele assumiu o poder: entre Sócrates e Lopes, dois géneros zoológicos para o mesmo Louçã, há o idêntico perfume "hollywoodesco", entre o cineclubismo de esquerda e o gosto pela cóboiada da brilhantina, como o exige a salsicharia teledemocrática.
Aqueles que têm crenças já não as podem exercitar na esfera pública. Ficam-se pela solidão dos lares, pelas pequenas catacumbas das redes de amigos e até pelos blogues que não são abruptos. Porque de quase de nada valem os signos institucionais de outras procuras, dado que a república caiu na ambiguidade discursiva de Sampaio, nesse texto sem palavra que apenas serve para interpretações da racionalidade importada, nesse discurso onde há apenas entrelinhas tortas e insinuações curvas, onde nem Deus escreveria direito nem o Diabo marraria. E, quanto menos a ideia e a emoção de nação nos mobilizarem, mais seremos estadualizados de forma alienígena.
Sem uma comunidade afectiva que nos dê justiça e bem comum, apenas reclamaremos direitos e nunca daremos ao todo a necessária justiça e o indispensável amor. Contestar, protestar, exigir podem ser fracturantes se não assumirem a dimensão militante da resistência. E caso não haja alma que nos identifique, não passaremos de mera sociedade anónima gestionária. Só com uma necessária tensão espiritual, poderemos vencer as teias da demagogia, da incompetência e do negocismo.
Tenho de chegar à conclusão que o velho Estado moderno se deixou enredar nas teias dos especialistas na conquista e manutenção no poder no âmbito do clubismo, do facciosismo e do campanário. Competentíssimos nesses domínios da fulanização, da galopinagem e do caciqueirismo, grande parte dos figurões que nos regem não percebem que atingiram, há muito, as raias do princípio de Peter, a partir das quais estão condenados a pisar os terrenos da incompetência.
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