a Sobre o tempo que passa: Não deixemos que a máquina estatal, paga pelo suor dos contribuintes, se fragmente em neofeudalismos partidocráticos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

26.5.07

Não deixemos que a máquina estatal, paga pelo suor dos contribuintes, se fragmente em neofeudalismos partidocráticos

Apoio o grito de revolta do meu amigo Mendo Castro Henriques, mesmo quando é pública e notória a minha antiga preferência pela Ota. Os amigos são para as ocasiões, mesmo quando têm sucessivas divergências de intervencionismo cívico e de reivindicações memorialistas, como a da campanha contra Aquilino Ribeiro, esse pedaço de pátria em forma escrita, que a todos nos deu identidade e que não pode ser decepado da tradição. De outro modo, também teria que reduzir D. Miguel à mera categoria do terrorismo e alinhar com banimentos, a que não escapariam muitos outros membros dos nossos panteões.

Apenas acrescento que não vale a pena alinhar em certos delírios oposicionistas que, tomando como pretexto as "gaffes" e gafarias que ensombram o executivo, acabam por entrar no ritmo da caricatura propagandística. Os vícios do centralismo e do autoritarismo são uma possibilidade que pode afectar um qualquer detentor do poder.

Também eu temo este agigantar do poder de ninguém, típico do comunismo burocrático, onde o clamor público do direito à indignação apenas consegue parangonas e ritmo contestatário de telejornal quando a pretensa vítima, dizem que a sexta, é um ex-deputado. Porque os vícios do micro-autoritarismo subestatal podem continuar a ser os anónimos cidadãos que não conseguem furar o bloqueio desta democratura de silêncios.

Já Montesquieu observava que quem detém um qualquer pedaço do mesmo poder tende a abusar do poder que dispõe. Por isso, apontava para a clássica balança receita da separação e divisão do poder e dos poderes, pelo establecimento de um sistema de pesos e contrapesos, de poderes e contrapoderes, onde, para cada acelerador, se deveria estabelecer um travão, naquilo que, outrora, Cavaco Silva qualificou como forças do bloqueio.

Julgo que as recentes crises têm a ver com a nossa falta de cultura pluralista, que tanto tem afectado o absolutismo do despotismo ministerial, como certo absolutismo democrático que lhe sucedeu. Onde, em vez de um rei absoluto, se colocou a absoluta abstracção do povo.

Com efeito, o chamado povo, como tal, nunca esteve nem estará no poder, dado que quem efectivamente o gere são os chamados representantes, como se dizia o antigo rei absoluto ou como se dizem, actualmente, os deputados eleitos e os governantes que aqueles sufragam.

Acontece apenas que estes representantes, directos ou indirectos, dependem do sistema de canalização que os elevou ao palco do estadão democrático. Isto é, dependem de duas formidáveis máquinas que podem desfocar a relação directa com o eleitorado. A montante estão os oligárquicos mecanismos da partidocracia. A jusante, os verticalistas processos dos aparelhos da administração do chamado Estado.

E tudo se agrava quando se elimina o sistema de competência e de carreira do velho conceito weberiano de burocracia racional-normativa e se faz um curto-circuito da partidocracia para a burocracia, com a criação dos tais
jobs for the boys and girls, nomeadamente com directores-gerais da confiança política, ou pessoal, dos senhores ministros. Porque se transporta para jusante a poluição existente a montante.

Logo, uma qualquer ministerial figura, marcada pela partidocracia, não pode lavar as mãos como Pilatos por um acto de um seu director-geral, nomeado segundo o critério da confiança política. Não pode invocar a autonomia institucional de uma qualquer direcção-regional, dado que o vértice é imediatamente responsável por tudo quanto emerge na fileira dos directamente dependentes. Não lhe é possível dizer, de acordo com o princípio da subsidiariedade, que uma entidade de ordem superior não pode interferir na esfera de autonomia de um seu directo inferior.

Esse modelo funciona quando há um complexo de esferas autónomas em razão da sua natureza, onde a que tem menos espaço na hierarquia nem por isso perde a plenitude da sua independência, nas matérias em que tem competência própria. O director-regional nomeado por razões de confiança política é tão indistinto quanto o adjunto ou o chefe de gabinte de Sua Excelência. Pertence à zona do não-pessoal-de-carreira, sendo passível de instalação e remoção pelas vagas do "spoil system".

Os sinais de despotismo de um só podem conduzir ao extremo oposto do despotismo de todos, também embrulhado nos mesmos mecanismos delatórios, com denunciações de ouvida, demagogia e populismo, os habituais prelúdios dos césares de multidões, nessa espiral de vindictas a que só pode atalhar-se pelos cumprimentos dos conselhos de Montesquieu, conforme a cultura do Estado de Direito.

Porque se apenas mantivermos o verniz do Estado de Legalidade, nem Bordalo Pinheiro poderia editar o seu "António Maria", havendo sempre candidatos a juiz Veiga, com os consequentes moscas do Intendente e bufos da PIDE. Não deixemos que a máquina estatal, paga pelo suor dos contribuintes, se fragmente em neofeudalismos partidocráticos.