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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.5.07

Quem verbera governantes pratica actos de indisciplina, com irreverente e grave conduta, revelando impossibilidade de adaptação às funções docentes



Tenho muito orgulho em ser funcionário público, ter um "ofício", ser "vicarium", estar integrado numa instituição e servir uma ideia. Começo a ter vergonha de estar na função pública deste Estado a que chegámos. E quase todos os dias me apetece ir ao meu aforro e publicar, do meu bolso, um grande anúncio num jornal de grande circulação, pedindo que me dêem emprego para aquilo que sei fazer, longe destas castas capitaleiras e partidocráticas que assaltaram os aparelhos, onde o lastro inquisitorial e pidesco nos asfixia, especialmente com o recente regresso às denunciações de ouvida, com colegas e com chefezinhos a aceitarem as vilanias e a difundirem bufarias.


Por hoje não falo no caso do funcionário que fez comentários jocosos sobre o senhor primeiro-ministro. Nem de mais recentes actos de persiganga noutros locais. Nem sequer temo que, do Partido Socialista, tenham desaparecido os liberdadeiros. Esses que andam distraídos com tanta azáfama e nem reparam nos estalinistas não reciclados que se infiltraram nos meandros dessa velha e fundamental casa da resistência à opressão.

Apenas recordo o ano de 1962, quando 47 professores universitários de Lisboa apoiaram formalmente a posição dos estudantes, em revolta, através de uma carta enviada ao Presidente da República. Um deles, socialista e liberdadeiro de sempre, até é então demitido de professor de uma dessas unidades orgânicas pelo governo. O ministro e director da escola, que o convidara para regressar a Portugal, não subscreve formalmente tal acto de saneamento, obedecendo plenamente à hipócrita legalidade, dado que deixa a subscrição de tal violência para um dos seus ajudantes.


O corajoso professor é demitido em 16 de Agosto, porque, em 13 de Maio, pondo em prática o seu feito de homem livre, escreve uma carta ao director da escola em que verberava a maneira como o Ministério tem conduzido a questão estudantil. O alto hierarca ministerial conclui pela indisciplina, irreverente e grave conduta, que revela, de facto, impossibilidade de adaptação às exigências da função que exerce. O corajoso professor há-se voltar a demitir-se como ministro em pleno gonçalvismo, para transformar-se num dos semeadores da resistência ao novo totalitarismo. Não consta que tenha praticado vindictas, mesmo contra o ministro salazarista que o demitira, tão vermicamente.

Apesar de defendido, entre outros, por um futuro ministro do mesmo Salazar, acaba formalmente demitido da função pública e o Supremo Tribunal Administrativo, entre cujos juízes se inclui um futuro provedor de justiça da democracia, dá servil razão ao governo. O supremo responsável ministerial pelo processo, menos de meio século volvido, há-de vir a ser elevado a paradigma de professor e de pensador político, graças aos modelos de revisionismo histórico em que costuma ser hábil.

O processo em causa está integralmente reproduzido em José Magalhães Godinho, Causas que Foram Casos. Eu pensava que tais peças faziam parte do pretérito imperfeito e não do presente incerto que nos asfixia e nos começa a proibir as necessárias saudades de futuro. Os vermes regressaram em força, carimbados com a categoria de especialistas em contra-subversão e análise de informação, reclamando até o legado do tal ministro salazarento e saneador, por interposto ajudante. A democracia dos homens livres vai apodrecendo e não convém que o PS se deixe cabralizar pelos novos zés dos cónegos que nele pedem tachos. Pela Santa Liberdade, pelejar até morrer!