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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.8.07

A liberdade não é uma concessão do príncipe ou da revolução, é uma conquista do homem revoltado contra a servidão voluntária



Para os devidos efeitos, junto parcela do discurso que proferi na minha escola em 20 de Novembro de 2006, na inauguração da exposição comemorativa dos 30 anos de Constituição, na presença do Presidente da Assembleia da República e do comissário da mesma mostra, Professor Doutor António Reis. Muitos auditores disseram então que tinha sido muito esotérico. Julgo que só juntei um pouco de lume de profecia ao lume da razão:



Interessa homenagear "aquela ideia de Estado de Direito, onde acima da lei está o direito e acima do direito está a justiça. Porque, como recordava Fernando Pessoa, se o Estado está acima do cidadão, o homem está a cima do Estado.


Interessa também salientar que, muitas vezes, temos conseguido espremer, uma a uma, as gotas de micro-autoritarismos que ainda nos poluem, esses restos de subsistema de medo que marcam os pós-autoritaritarismos e os pós-totalitarismos, esses atavismos absolutistas que dizem que L'Etat c'est moi e que quod princeps dixit, legis habet vigorem, porque princeps a legibus solutus.


Infelizmente, mesmo a nível da universidade, continuam muitos segmentos do regime des décrets que, segundo Hannah Arendt, coincide com o governo da burocracia, essa mera administração que aplica decretos, existente nos Estados imperiais, como o czarismo russo e a monarquia austro-húngara, bem como em certos impérios coloniais.




Os burocratas destes regimes que administram territórios extensos com populações heterogéneas, pretendem suprimir as autonomias locais e centralizar o poder, mas apenas exercem uma opressão externa, deixando intacta a vida interior de cada um, ao contrário dos totalitarismos contemporâneos. É uma espécie de domínio perpétuo do acaso e de governo dos espertos onde o burocrata tem a ilusão da acção permanente e onde, por trás dos decretos, nem sequer há princípios gerais de direito.


Não sei se vou ter tempo para clamar o regresso do patriotismo científico, numa centenária escola universitária pública que já serviu quatro regimes e que certo revisionismo histórico e alguma literatura de justificação confundem com uma escola de certo regime, esquecendo-se dos pais-fundadores da monarquia liberal de da primeira república, do inspirador, Luciano Cordeiro, a um dos primeiros graduados, Álvaro de Castro.




Porque, no começo deste novo século da escola, não podem continuar apagadas as profundas memórias que nos ligaram aos próprios factores democráticos da formação do Portugal contemporâneo, para parafrasear Jaime Cortesão.


Importa recuperarmos fontes históricas adormecidas pelo autoritarismo salazarista, onde está por inventariar o esforço de subversão criadora de um Sarmento Rodrigues, o ministro que, tardiamente, nos tentou fazer regressar ao conceito do universalismo lusíada que havia sido lançado por Paiva Couceiro e Norton de Matos, especialmente na sua ligação a Gilberto Freyre, ou o simbólico papel que aqui teve o nosso docente Agostinho da Silva. Tal como importa assumirmos certos pecados no afastamento de professores como Vitorino Magalhães Godinho ou, mais recentemente, com a recusa de contratação de Luís de Sá.


Comemorarmos os trinta anos de constituição tem de ser assumirmos a bela ideia de luta pela Constituição, com verdade e autenticidade, espremendo gota a gota o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio.




Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: n'ayez pas peur, na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só".




PS1: Parece que certo delírio de estadão, entre notas oficiosas, cartas insultuosas e outras técnicas de intimidação, acaba de fazer acompanhar o processo de "delete" de um dissidente com o lançamento de um anónimo blogue, onde basta um mínimo de conhecimento de análise de conteúdo para se confirmarem as coincidências de sapientíssima origem neopidesca. As anunciadas bufarias serão naturalmente recompensadas. Por mim, não alimentarei estas cenas de ódio. A causa pela qual me mobilizei publicamente venceu. Outros que tirem as conclusões sobre a falta de ar livre que ainda amarfanha alguns segmentos dos nossos quintais universitários. A liberdade não é uma concessão do príncipe ou da revolução, é uma conquista do homem revoltado.