a Sobre o tempo que passa: Nos oitenta anos de minha mãe

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.8.07

Nos oitenta anos de minha mãe


Cumprindo o prometido, vamos à vida que vale a pena. Neste tempo de homens lúcidos que detestam violinos, vale a pena a lucidez de ser ingénuo. Por mim, depois de ser obrigado a desistir de uma conferência que tinha aprazada em Londres, porque o meu Reitor me vai conceder audiência nessa altura, estou prestes a largar da capital e a rumar para as raízes da pátria, porque a minha mãe vai fazer oitenta anos. E apetece ser de novo menino de minha mãe, e sentado em seu colo quente viajar pela nostalgia dos dias da minha infância. Fingir quem fui sonhando quem hei-de ser. Ouvir de novo versos de embalar e nas ondas do berço adormecer um sono sonho que seja eternidade. Poder, mais uma vez, crescer e com olhos brilhantes de pureza, voltar ao meu gatinhar inicial pelas areias do desconhecido. Ter força para desvendar a curva do meu caminho.

Agora, já poucos sabem dos trilhos que todos os dias nos levavam às terras da Rodas ou do Cimo do Olival, nesses carreiros feitos com pés descalços, onde todos conhecíamos as árvores, quase pelo nome, e sabíamos das curvas da ribeira, dos silvados.

Na minha aldeia, também eu descobri, com a suavidade de menino que foi feliz, que há um espaço de memória, humanamente mitificada e reconstruída, onde também havia caminhos de aborígenes onde as pedras dos trilhos guardavam memórias e espíritos dos antepassados.


Continuo a ser o sonho de minha avó e de minha mãe. Sempre, sempre, dentro de mim, o desejo de partir, de aventura, de poder quebrar as amarras que nos ligam à terra-mãe. Porque mesmo quando cortamos o cordão que nos liga à memória da pátria, mesmo quando dizemos que fugimos, apenas estamos a reconhecer que continuamos presos a essa pátria prometida de quem somos parte.

Minha mãe nasceu no mesmo dia da minha avó e a bela fotografia que aqui deixo foi tirada por alguém a quem eu devia ter prestado a minha sentida homenagem na passada semana: o meu querido primo Fernando Cordeiro, o primo-juiz que pela lei da morte passou a ser memória e eternidade. Conseguiu viver como pensava e, ao seu exemplo de vida, devo muito de quem sou, principalmente a vontade de cursar direito.

Minha mãe, minha avó, meu falecido primo, todos os caminhos de vida que me fazem cruzar com a Sardoeira, onde comecei a nascer no dia da festa de Santa Luzia, nessa genealogia de memórias, exemplos e força que sempre peregrino, em momentos de resistência individual, quando a própria solidão da autonomia me faz companheiro de quem quer servir ideias, obedecer a regras e conviver na rede das manifestações de comunhão pelas coisas que se amam. Começando em mãe, todos os que pensam, de forma racional e justa, chamaram pátria a este indefinível...