Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
4.9.07
O texto que se segue tem mais de uma década e foi por mim, então, publicado na imprensa. Um dos principais defendidos já se libertou da lei da morte. O outro poderia contar, com todos os pormenores, como os dois até ficaram sujeitos a termo de identidade e de residência. Apenas apagarei as referências ao caso concreto. Mas a versão integral está disponível no arquivo "on line" da minha página profissional, onde também incluo outras polémicas públicas de velhos blogues meus, na versão também integral, bem como excertos das fichas da PIDE, para que os novos bufos se continuem a deleitar com as folhas do meu cadastro, que, aliás, tenho orgulho de sempre ter desvendado.
"Depois de séculos de pretenso santo ofício, remodelado sucessivamente pelos juízos de inconfidência, pelos moscas dos intendentes, pelos agentes do maneta, num modelo perpetuado pelos formigas brancas, pelos polícias de defesa do Estado e pelos comités de vigilância revolucionária, parece continuar em vigor entre nós aquele princípio do regimento da dita santa inquisição, segundo o qual a denúncia é um dos meios principais, mesmo com escritos não assignados e denunciações de ouvida.
Se já não há mesas do santo ofício, com as suas sessões de genealogia e in specie; se o denunciado não tem que temer os cárceres do dito, a morte civil ou outras afrontas, continua a bastar uma carta anónima remetida a ..., desde que se encene uma fuga ao segredo de justiça, para certos órgãos de comunicação social tratarem de lançar alguém para o pelourinho da suspeita. O terrorismo niilista que percorre os meandros de certa opinião publicada, se pode não afectar a opinião pública nem beliscar a opinião crítica, nem por isso deixa de arrastar alguns nomes para o pelourinho da suspeita, numa política de camartelo que vai unidimensionalizando quem ousa sair da fileira das modas estabelecidas e sabe que só é moda aquilo que passa de moda, que só é novo aquilo que se esqueceu.
Vem isto a propósito de uma parangona pseudo-jornalística que acusa de ... dois catedráticos da ... . Se os especialistas na matéria não estranharão tal processo, os incautos ledores das prosas publicada, onde a imaginação criadora do transmissor da notícia já vislumbra agentes da Polícia Judiciária na consulta de incunábulos e na denúncia dos novos piratas de autores medievos, poderão considerar que não há fumo sem fogo e, certamente, não terão paciência para aturar a resposta técnico-científica que os dois mestres já deram. Porque, como dizia Voltaire, menti, menti, que da mentira alguma coisa fica. Por outras palavras, o objectivo dos denunciantes já compensou a denúncia, porque o efeito do golpe, nunca pode ser remediado pela letra miúda da defesa da honra.
De qualquer modo, como seria estimulante sentir os nossos agentes de investigação penal correrem lestos pelos glosadores e comentadores e pedindo peritagem técnica aos eruditos mundiais na matéria, numa acção digna de um romance de Umberto Eco e quase tão estimulante como foi a cena da polícia política salazarista a interrogar os desvios filosóficos de Abel Salazar, recorrendo a Leonardo Coimbra, que saiu da polícia insultando os pobres agentes que o tentaram usar como mero intérprete. Tudo seria ridículo, se não fosse trágico e se, nos meandros do processo, não tivesse havido mentira e intenção de ofender a honra de quem por não dever, não deve temer.
Tristes são estes nossos tempos quando a coragem da polémica, do duelo de argumentos e do bom combate de ideias, cedem lugar ao cinzentismo da cobardia, escondida sob o anonimato.
Tristes de nós se continuarmos amarrados àqueles pretensos analisadores de notas de pé de página que preferem arrazoar sobre o sexo dos anjos de uma pequena folha ou de um pedaço de ramo, esquecendo a árvore e perdendo o sentido da floresta. Tristes são os tempos se dermos o nome de autores àqueles que não têm autoridade e se qualificamos como autoridades aqueles que não são autores.
Quanto apetece plagiar Camilo Castelo Branco, quando este, em 1852, falava numa época essencialmente analisadora, onde o nosso público é zelosamente empenhado em julgar os grandes e pequenos acontecimentos, desde a revoltosa queda de uma dinastia de quinze séculos até à demissão imprevista de um cabo de polícia. Também julga os grandes e pequenos homens, desde o heróis de cem batalhas até bagageiros inofensivos: desde César a João Fernandes.
O defeito continua quando se fotografa um homem de Estado em trajes menores, ao mesmo tempo que se conjectura sobre a moeda única, se elabora uma teoria sobre o erro crasso de um determinado árbitro num jogo de futebol ou se disserta sobre um qualquer jurista medieval.
Não quero entrar na polémica histórico-jurídica a propósito dos fragmentos de casca árvore que a motivaram, nem sequer imaginar quem serão os inspiradores da falsa denúncia, certamente alguns mais alfarrabistas-historiadores do que historiadores de histórias de alfarrábios, mas não posso deixar de lastimar a lama que foi atirada a dois autores, a uma escola e a uma profunda tradição universitária portuguesa. Os Professores Doutores ..., especialmente este último, o principal visado pela operação de enlameamento engendrada pelos anónimos denunciantes, não precisam de adjectivos por parte de quem os conhece e estuda. ....
O niilismo inquisitorial, adepto da terra queimada pela intriga, instrumentalizando a liberdade de expressão e, sobretudo, a liberdade de imprensa, não pode ser compensado pelo rigor da protecção coactiva de uma qualquer lei, nem pelos meios de defesa do poder judicial. Para além do direito, há a moral, aquele valer a pena estar de acordo consigo mesmo, mesmo que pareça estar-se em desacordo com todos os outros.
O velho provérbio de que os cães ladram, mas a caravana passa, não é reconfortante e pode não ser verdade, porque implica deserto, caravana, camelos e cães disponíveis para ladrar. Há quem não ande em caravanas, há sítios que não gostam de ser deserto e há os cães que obedecem sempre à voz do dono ou daqueles que os assanham. Talvez não valha a pena termos de escolher, do mal, o menos, isto é, entre o canino e o camélico, quando se prefere a terra dos homens, quando apetece caminhar e há tanto que fazer neste nosso tempo que já não é de vésperas, mas de insensível caminhada para um vazio de poder cultural, para onde correm lestos os iconoclastas dos novos camartelos colonizadores.
Neste tempo de globalização, de diluição das diferenças nos todos unidimensionais das modas culturais, só aqueles espaços culturais que estão cansados de autonomia se autoflagelam derribando as pedras vivas dos homens livres que vão plantando as macieiras do amanhã. Esses que no silêncio dos claustros semeiam, no longo prazo, o valer a pena continuarmos a autonomia cultural portuguesa".
Para mais desenvolvimentos, consulte-se "Discurso hecho con ocasión del famoso juicio y Auto de Fe celebrado en Logroño el año 1610". Sobretudo, o parágrafo final: convendrá que quando los reos se van á declarar aquellas sus monstruosidades de vuelos y transformaciones y lo demás, que no sean oídos ni tenidos por confitentes, sino por negantes, que dicen de propósito disparates increíbles para encubrir la verdad y porque los dejen, y porque desde la primera es muy propio á las mugeres y á los hombres como ellas alegar para escusación y para aligerar sus culpas: Serpens decepit me, «el diablo me engañó», combatiéndome con tan estrañas y fuertes máquinas como la que digo, y ansí no es mucho que me haya rendido. Puede ser que el pacto sea entre ellos, y que estén de acuerdo de confesar siempre tales cosas antes que lo cierto, pues se conforman tanto. Y este modo de entender no excluye los benéficos ó benéficas, ni las unciones para dormir y soñar. Esto me parece, salvo etc. et sub correccione Santæ Eclesiæ Romanæ.
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