a Sobre o tempo que passa: Da despolitização do Estado à democracia sem povo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.10.07

Da despolitização do Estado à democracia sem povo


Sócrates, o gajo porreiro que trata o presidente da comissão europeia pelo portuguesíssimo pá, tem que voltar a enfrentar as chatices domésticas, as tais que metem financiamentos partidários enevoados por irregularidades, fatinhas de felgueiras e toda uma federação de micro-autoritarismos subestatais que vão difundindo essa cultura de medo que sitia o estado de direito, o qual deixa de ser a necessária religião secular, passando a mera bola de bilhar que vai sendo arremessada pelo acaso dos poderes fácticos dos sempiternos donos do poder. Hoje, depois dos vapores da murganheira, já voltámos ao "day after" da falta de mobilização comunitária que não aguenta a liderança tricéfala do PSD (não esquecer as homílias semanais de Marcelo) nem entende a vitória dos meus irmãos liberais na Polónia.


Acontece que a unidade do Estado, em vez de federar a diversidade, fragmenta-se em neofeudalismos e neocorporativismos, directamente proporcionais à própria despolitização do Estado de uma democracia sem povo e de um direito sem justiça. Fica a pirâmide verticalista da máquina do poder pelo poder que não respeita os espaços de autonomia das sociedades imperfeitas que perdem a plenitude das matérias que dizem respeito à respectiva natureza, da família à universidade, passando pelos espaços associativos daquilo que se designa por sociedade civil.


Mais do que isso, os vários grupos se, pelo lado superior, caem nas teias do concentracionarismo, também se deixam enredar, pelo lado das bases, no antipolítico do regresso ao doméstico. Logo, é inevitável que se confunda autoridade com autoritarismo e superioridade hierárquica cm centralismo arrogante, assim se liquidando as necessárias autonomias das sociedades complexas.

Veja-se esta multiplicação de políticas (policies), sem que assentem numa pensada macropolítica, geradoras de uma desconexão fragmentadora, impossível de ser curada por celestiais planos construtivistas de um livro único de reforma estadual, como pretendeu configurar-se o PRACE.


Porque não pode reformar-se o Estado sem uma ideia de Estado. Porque não pode pensar-se o Estado sem uma ideia de sociedade. A mera aritmética quantitativista do menos ou mais Estado, ou do menos ou mais Sociedade, com que confundem liberalismos e socialismos, é péssima conselheira. Nenhuma destas caricaturas se compadece com a necessidade de, em primeiro lugar, se repolitizar o Estado, retirando-o da inércia moluscular em que se encontra.

Porque o corpo político, pleno de gorduras, bem precisava de um tratamento intensivo que lhe aumentasse a agilidade dos nervos, sustentando-o numa arquitectura flexivelmente óssea, principalmente pela estruturação da coluna vertebral.


Com efeito, a política quantitativa do menos Estado não pode transformar-se numa receita dos que atiram pela janela fora algumas missões do dito, para, depois, as deixarem entrar, de forma pouco transparente, pelos sótãos e alfurjas da avençologia, da consultadoria e da subsidiocracia, com muito "outsourcing" de clientelismo e barganha.


Mesmo um liberal empedernido não pode negar o intervencionismo do Estado como cérebro social nos domínios da economia e da sociedade. Só que não podemos ser conservadores face às antiquadas respostas dadas à velha questão social. Especialmente quando importa aplicar o fim da justiça a novas circunstâncias, muito principalmente quando somos desafiados pela nova questão social.