a Sobre o tempo que passa: Com muitas saudades de futuro

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.12.07

Com muitas saudades de futuro


Hoje é dia dito de festa, pelo Tratado dos Jerónimos, à beira Tejo. E a cidade de Lisboa associou-se ao evento, com transportes gratuitos, bandeirinhas e os museus de porta aberta, sem bilhete de entrada. Sócrates e Amado, cansados, mas felizes, esqueceram a cena de ontem no parlamento europeu, com aquela meia dúzia de membros de um rancho folclórico que, não obedecendo aos ditames das duas principais multinacionais partidárias da Europa, exigiram que os povos referendassem o tratado. O primeiro, até logo os carimbou de "anti-europeus". E com toda a razão. Pelo menos, o povo português apenas está dividido entre o Senhor Feliz e o Senhor Contente.


Hoje, o dia começou com um belo encontro com uma fiscal da EMEL que me queria multar. Porque ainda não tinha mostrado o papelinho das moedas. Perdoou-me porque o trazia na mão, mas disse que seriam trinta euros, porque ele, que era ela, era mesmo da verde EMEL e, portanto, mais cara do que os multadores concessionados, vestidos de castanho, dado que estes apenas levam cinco euros. Tentei lembrar-me do que diz a constituição e a carta dos direitos fundamentais, mas sorri. Entrei no café e logo a Paula, a dona, nos anunciou que aproveitássemos os dias que restam para fumarmos um cigarrinho, porque até nas celas das prisões vai chegar a higiene. Sentámo-nos e reparei que circulava uma petição contra a ASAE, a partir do texto de um antigo ministro do comércio que chegou a tutelar a polícia económica, o socialista António Barreto. Continuei a sorrir com as maravilhas da nossa idade e, em protesto, decidi não hastear a bandeira das doze estrelas na varanda.


Abri o jornal e reparei que, nesta operação de regulamentarice, os controladores constitucionais vão acabar com mais de duas dezenas de ranchos folclóricos a que dávamos o nome de partidos, isto é, os que, nos próximos noventa dias, não conseguirem obter o comprovativo de mais de cinco mil filiados. Mais sorri com esta operação de limpeza que vai transformar as próximas campanhas eleitorais em intensos combates entre Monsieur Dupont, o tal feliz, e Monsieur Dupond, o tal contente, mesmo que apareçam os habituais "caniches" anti-sistémicos, mordendo nas canelas do folclore, para que o folclore continue. As duas grandes multinacionais partidárias têm assim a porta aberta para que se constituam sucursais, correias de transmissão ou MDPs e Verdes dos quatro grandes. Nunca mais o Boavista poderá ganhar um campeonato, nem o Atlético ir vencer o Porto.


Apesar de tudo, continuo triste. Tive novas de um velho amigo em luta pela vida na cama de um hospital. Ainda há dias trocávamos cartas, onde ele me remetia um seu último escrito e a que logo respondi: Claro que já li o prefácio. Para aprender. E para elogiar. Sobretudo pelas provocações que me gerou. Primeiro, a falta que faz um manual de memória estratégica do Portugal Universal. Sobretudo, para tratar da heterodoxia do abraço armilar. Por isso, recordei o lema que D. João II entregou ao futuro cunhado, quando lhe deu a armilar como símbolo: "spera, sphera, sperança". Em segundo lugar, também recordar o plano estabelecido logo a seguir a 1640, visando a mudança da capital para o Rio de Janeiro, já programada por D. Pedro II. Em terceiro, para assinalar a jogada dos portugueses da terra de Salvador Correia de Sá para reconquistarem Angola, fundando uma nova São Paulo que agora apenas se conhece pela terminação "de Luanda". E acima de tudo, a memória do José Bonifácio, o tal agente militar do Conselho Conservador que integrou um batalhão académico que resistiu a Junot. Porque sem a independência de Bonifácio não poderia continuar a América Portuguesa, sob o nome de Brasil. Claro que me apeteceu sonhar. Por exemplo na criação de um Instituto, ou numa Fundação, dita José Bonifácio de Andrade e Silva, visando a memória do abraço armilar e do reino unido que transformou o símbolo em binacional. E também me apeteceu outra provocação: a elaboração de uma história estratégica de Luso-Brasileira, onde se recolhessem estes heterodoxos que nos dão saudades de futuro. Espero que ele me dê resposta ao desafio. É a melhor maneira de comemorarmos o Tratado dos Jerónimos.