Neste dia da Senhora da Conceição, rainha de Portugal, e de cimeira euro-africana, a maior das cumeadas políticas até hoje realizada em Portugal, apenas se confirma que a falta de justiça na distribuição da riqueza é directamente proporcional às degenerescências da política, como são, e sempre foram, as tiranias, as oligarquias e as ditaduras das maiorias, para não falarmos nas variantes da cleptocracia, do nacionalitário, do tribalismo, dos senhores da guerra e do fundamentalismo. Por isso, começo por encimar este postal com a Acta Final da Conferência de Berlim sobre a partilha de África, de 1885, onde não faltou o próprio imperador dos otomanos.
Não nos incomodemos com as polémicas mugabianas ou com o espectáculo de Kadhafi, com as suas tendas, amazonas e tiradas, onde não faltou conferência universitária, mas sem que um reitor lhe dissesse, olhos nos olhos, o que um reitor norte-americano disse ao presidente do Irão, em situação paralela. Ficou o pedido líbio sobre a urgente necessidade de os europeus indemnizarem os africanos por causa da colonização. Tal como os descendentes do Império Romano e dos reinos bárbaros poderiam solicitar idêntica indemnização aos invasores árabes. Ou um lusitano reclamar coisa parecida à República Italiana pela morte de Viriato. Para não falarmos nos bantos que se estabeleceram em Angola depois da chegada de Diogo Cão à foz do Congo.
Pensemos um pouco em nós, nas vésperas de Berlim, em 1884. Demos a palavra a Oliveira Martins, no lançamento do programa de A Província: Pelo fundo das províncias, em todas as cidades e vilas afastadas, há um povo que, sem protestar ainda clamorosamente, murmura contra o desgoverno em que vivemos... Dispersas essas vontades, sem coesão essas forças, ficam impotentes contra o cepticismo profundo que lavra na capital... Debate-se contra a força da inércia, contra a resistência da intriga, contra a lepra da corrupção, que se insinua por todos os meios, pervertendo todas as boas vontades, e sorrindo céptica e alvarmente perante qualquer movimento de coragem e dedicação patriótica.
Continuemos a deixar falar Oliveira Martins, agora com um texto de 1885: Face um ensino sem educação, as letras sem os costumes, o saber sem o carácter, eis que, entre regeneradores e progressistas, há apenas uma tradição já vazia de significado político. Todos somos liberais, todos somos conservadores, todos queremos melhoramentos materiais, todos queremos igualmente melhoramentos morais. Há acordo a propósito de tudo: há desacordo a propósito de tudo, igualmente. Porque das ideias de governo não curamos: tratamos apenas de quem há-de governar. Em religião, somos todos cépticos; em política, todos liberais, “hasta los curas”; em administração, todos centralistas ou descentralistas, conforme sopra o vento; quanto a colónias, estamos também de acordo; quanto a obras públicas, “haussmanizamo-nos” todos igualmente.
Voltemos ao agora. Porque se, depois da eliminação formal do colonialismo do Euromundo e do fim da Guerra Fria, algo tem melhorado em termos de direitos humanos, de luta contra a fome e a doença, ainda não atingimos níveis compatíveis com os meios materiais que atingimos, para fomentarmos a dignidade humana e o direito à felicidade. E África tem sido a principal vítima da hipocrisia globalizadora que ocupou o vazio de moral depois do ano 1989.
Reparemos no aconteceu em 1890, com palavras de Basílio Teles: A Portugal sucedia o que sobrevém aos asteróides do espaço: entrara na órbita envolvente duma potência mais forte, e era, como eles, irresistivelmente arrastado para dentro da sua esfera aspiradora. Toda a política exterior seguida pelos Braganças desde 1640, consistira em fugir de um perigo para ir buscar outro perigo; em evitar um leão para defrontar um leopardo; em escapar do Demónio para esbarrar com Satanás.
Convém que Guerra Junqueiro não volte a editar Finis Patriae, também de 1890:Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente, Que tens levado tu, ao negro e à escravidão? Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente Repartindo por todo o Escuro Continente A mortalha de Cristo em tangas de algodão. Nem deixemos que o mesmo escritor profira também um violento discurso onde venha a considerar que os partidos correspondem ao estado da Nação. Fazem-me lembrar um homem que, numa feira, vendia vinho e vinagre na mesma pipa. O vinho saía por um lado e o vinagre por outro. A droga era a mesma.
Entretanto, nesse mesmo 1890, Sebastião de Magalhães Lima partia pela Europa, numa propaganda intensa a favor da confederação latina, uma federação republicana dos povos latinos, como preâmbulo à confederação geral da Europa civilizada, e como preparação para que um dia possa realizar-se o sonho dos filósofos e a utopia dos videntes, a fraternidade humana, que hoje tem por seus implacáveis inimigos o egoísmo dos monárquicos, o despotismo da tradição e o preconceito de inconscientes multidões, como pode ler-se no relato da viagem que publicou Pela Pátria e pela República. Por outras palavras, os republicanos pareciam, em 1890, saber conciliar o ideal maçónico da república universal e dos Estados Unidos da Europa com o mais exaltado dos nacionalismos pátrios, nomeadamente pela construção imperial, herdada de uma velha ideia de cruzada, pelo que a esfera armilar acaba por conciliar-se com as quinas e a Cruz de Cristo que, entre nós, foi herdeira dos iniciáticos Templários. O sebastianismo tenta, assim, conciliar-se com a ciência e a aventura dos Descobrimentos com uma ideia de Estado.
Voltemos ao século XXI. Por mais cuidada que tenha sida a preparação desta cimeira, não é desta que podemos assinar um projecto de reconstrução de uma comunidade de destino no universal, capaz de ultrapassar as vergonhas naturais geradas pela Conferência de Berlim, em nome de Deus todo poderoso.
Como observava Oliveira Martins em 1890, não há partidos, não há doutrinas constitucionais, a liberdade política saiu do campo da doutrina para o dos costumes. Daí, assistir-se a um novo estado de coisas: os partidos dissolvem-se em bandos, as influências pessoais substituem a fugida influência dos princípios, os bandos aparecem transformados em sociedades cooperativas que funcionam exclusivamente, ou quase, em benefício dos associados.
Apesar de nem todos lermos a cartilha de Frantz Fanon, ainda não é possível apagarmos as memórias da escravatura e o travo amargo da revolta, do sangue e da derrota, nesse África, Adeus, com muitos fantasmas e preconceitos, tanto da guerra como do ódio racial. Basta notar as muitas pequenas histórias que todos vão recontando, sobre os processos do colonialismo e da descolonização, entre as guerras coloniais e as guerras civis que todos fomos semeando.
E não há missões civilizadoras, laicas ou cristãs, bem como cooperações, negócios, ONGs, acordos culturais, ou parcerias para investimentos que sejam suficientes para podermos olhar o sol de frente. Isto é, a reconstrução da necessária comunidade de significações partilhadas que faça, do Mediterrâneo e do Atlântico, os mares interiores de uma construção conjunta.
Por outras palavras, há sempre consequências domésticas dos grandes actos internacionais. E nada pior do que os essencialismos, tipo homem africano ou homem europeu. Como se eu fosse otomano, ou o líbio fingir-se de bosquímano. O que não subscrevo é o recente discurso de Sarkosy em Dakar: le drame de l'Afrique, c'est que l'homme africain n'est pas assez entré dans l'histoire...jamais il ne lui vient à l'idée de sortir de la répétition pour s'inventer un destin... (26 de Julho). Em vez do hegelianismo de direita, prefiro o teilhardiano Senghor e não quero reclamar a Paris indemnizações por ter napoleónicas intervenções armadas, com provados roubos e violações. Prefiro a Europa unida e a cooperação euro-africana, mesmo que haja brumas na memória.
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