a Sobre o tempo que passa: Sabe tão bem sentir o silêncio de estar vivo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.12.07

Sabe tão bem sentir o silêncio de estar vivo


Mais um magnicídio, agora no Paquistão, na fronteira dos impérios, numa potência nuclear, no choque dito das civilizações, na luta pela democracia. Por cá, PS, PSD, CDS e outros discutem varas, não recordam cardonas, brincam a catrogas, a loureiros, a cadilhes e a pinhos, nessa barganha do Estado e dos oligopólios, com advogados dos grandes escritórios a comentarem. O estado a que chegámos são eles, as novas famílias que sucederam às anteriores famílias, dos tradicionais donos do poder. Todos atiram pedradas às vidraças dos outros e nem reparam que, quando chegam a casa, também têm as suas quebradas pelo Pedro da Silva Pereira e pelo Rui Gomes da Silva em glosas sobre a cunhocracia. O Estado não somos nós. Por isso prefiro recordar o eterno, repetindo o que escrevi há dois anos.

É tempo de Natal, quando a chegada do solstício nos dá sinal da mudança do tempo, do novo ano que nos poderá trazer viragens de esperança na procura do tempo que apetece, quando efectivamente apetece olhar dentro de mim e continuar a viver assim, na felicidade de viver, diante de um tempo que devo sentir e aprisionar sem que as teias da devassa me sufoquem e angustiem. Porque sabe tão bem sentir o silêncio de estar vivo, sabe tão bem suster a respiração e viver o estar feliz, com tanta gente à minha beira. Assim, olhando os olhos do sol e sentindo o azul da distância, para me poder navegar em verso. Que os outros dias e outros anos possam chegar assim dentro de mim.

Porque há períodos em que devo fazer uma pausa na análise comportamental da politiqueirice lusitana, quando, cumprindo o ritual de começar a escrever, de escrever por ter mesmo de escrever, por ter o prazer de escrever-me, sentir a maneira como a caneta vai levando letras ao papel, comparando-as com outras letras da mesma caneta, noutros dias sentidas e desenhadas. Que assim compreendeo porque, sendo o mesmo, através das mesmas mãos, vou variando dentro de mim, perante novas circunstâncias.

Porque todos os dias procuro na palavra aquela voz interior que preciso para poder expressar quem sempre fui, diante das novas circunstâncias que os novos tempos me trazem. Porque todos os dias também os dias variam de nuvens, de sol, de calor e frio. Porque a mesma janela aberta para a mesma rua me vai trazendos momentos diferentes da mesma cidade, pedaços de um movimento que, dia a dia, se não repete. Na gente que passa, no miúdo que grita sua alegria, na música que se vai ouvindo na vizinhança, nas novas flores que a gente que passa vai trazendo em suas roupas.

Até voltei a sentir o prazer de voltar a olhar, do miradouro, o rio que nos dá mar, o sabor da raia redonda, do gelado de azeite, da sopa de abóbora, da sala de almoçar no alto da colina. Sobretudo, uma cidade a que posso chamar nossa, plena de um sol seco de inverno, e de um frio que dá às casas as dimensões da imaginação vivida. Sobretudo, nesta Lisboa inteira, descendo para a distância, nesta cidade plena de calor e luz, ao fim da tarde.