a Sobre o tempo que passa: Corrupção 10 - O político usurpado pelo doméstico

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.1.08

Corrupção 10 - O político usurpado pelo doméstico


E foi-me dado concluir:


Tanto têm culpas os arquitectos do sistemismo vigente, desde os constitucionalistas aos ordinários legisladores, como os sucessivos executivos da máquina, porque todos foram transformando as mesmas em rotinas degenerativas.

Já não temos apenas a velha corrupção do negocismo, onde abundam os jagunços e patos bravos, esses que foram ocupando, anos a fio, os interstícios do aparelhismo, mas também a própria corrupção dos ditos intelectuais, incluindo os que fazem discursos contra a primeira forma de corrupção.

Surgiu, com efeito, uma casta de "intelectuários" que deram corpo a uma nova forma de "intelligentzia", esse pretensa nova classe que se assume como uma espécie de clube fechado, onde abundam os que, sem carreira de legal "cursus honorum", mas com todo o carreirismo, vivem endogamicamente na subsidiodependência desse sindicato de citações mútuas que elevou a cunha ao requinte dos clubes de reservado direito de admissão. Uma zona que não é passível de análise pelas velhas lentes da teoria da conspiração, onde tudo se continua a explicar pelas invocações protectivas dos maçons e "opus Dei", dado que talvez importe detectar outros modelos de feudalização, bem mais eficazes.

Julgo que está fundamentalmente em causa o medo que muitos sentem pelo abismo do proletariado intelectual, num país onde ninguém consegue viver dos produtos do respectivo pensamento, do literário e artístico ao científico. Basta notarmos as bichas do encómio que notáveis artistas, homens de letras e jornalistas fazem às portas de certas fundações e de outros locais de distribuição da prebenda, coisa que afecta o próprio sistema público de financiamento da chamada investigação científica, onde ninguém avalia os avaliadores oficiais. Basta notar como muitos têm transformado a zona das ciências sociais e humanas e novas formas de ciências ocultas, principalmente quando gente nomeada partidariamente se deixa enredar nas teias da sedução de certos pretensos gurus de mão bem sujas, nomeando-se gente sem curriculum apenas por fidelidades pessoais, alguns dos quais sem um único grau de suor na área onde distribuem tostões.

Quando a governação se enreda nas teias do doméstico, a racionalidade meramente técnica dos chamados peritos, gestores organizadores e tecnocratas pode fazer regressar o Estado ao regime da administração das casas privadas

E assim corremos o risco de voltar às boas intenções do despotismo, de que o inferno da história está cheio.

A corrupção não vem apenas de cima para baixo, mas, sobretudo, de baixo para cima.

Ela nasce dos patos bravos, da federação dos pequenos e médios compradores do poder autárquico que encheram os partidos com “apparatchikini” sem qualidade, transformados em traficantes de influências.

Resta-nos semear revolta individual, sem esperança na revolução colectiva.

Resta-nos o poder singular da palavra.

Mas com o realismo de reconhecermos que um dos principais segmentos da corrupção passiva campeia entre os intelectuais, à espera de sinecura e de subsídio.
A propósito do bastonário, dez observações sobre a corrupção: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10