a Sobre o tempo que passa: Marinho Pinto: contra a desordem bem organizada, uma anarquia ordenada

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.1.08

Marinho Pinto: contra a desordem bem organizada, uma anarquia ordenada


Dois anos depois do facto consumado, o Tribunal Constitucional veio confirmar que, à excepção de Garcia Pereira, nenhum dos candidatos presidenciais, incluindo o eleito, cumpriu a lei. Não consta que algum deles tenha sugerido aos partidos apoiantes uma simples tentativa de aproximação do direito eleitoral da vida, procurando mais autenticidade naquilo a que os mesmos agentes do principado se vincularam. O único que viola as regras continua a ser a cigarrilha do director da ASAE nos primeiros minutos do ano novo. Num Estado de Direito, o príncipe está sujeito à própria lei que faz e nem tudo o que príncipe diz tem valor de lei.


O povão vai ouvindo e confundindo essas irregularidades com o apito dourado, ou com a impunidade face à corrupção, hoje denunciada por Marinho Pinto, o novo bastonário da Ordem dos Advogados, em entrevista à "Antena Um", onde também prometeu apresentar, dentro em breve, casos concretos de pessoas em cargos de destaque nos órgãos de poder. Vale-nos que somos definitivamente um país de escritos e escritores, sobretudo quando, também hoje se confirma que publicamos 12 500 livros por ano, mais de mil por mês, mais de três dezenas por dia, quase cinco por cada hora de trabalho, isto é, em cada quarto de hora sai um livro do prelo...


Mas voltando ao bastonário, o mesmo também decidiu partir a loiça no velho partido dos becas, isto é, dos licenciados em direito, atacando as fábricas institucionais que lhes dão canudo e que têm direito a um órgão de soberania próprio. Marinho fala em negócio que dá milhões a muita gente, insurgindo-se, em particular, contra os catedráticos e outros professores de direito, pelo exagerado número de alunos que têm nas respectivas faculdades, porque se instalam nas cátedras e criam um exército de servidores, com gastos escandalosos e vontade de controlar a Ordem. Contactado, o senhor ministro da ciência e das universidades, acusado de representante de tais corporações no governo, emitiu comunicado, onde, lavando as mãos como Pilatos, declarou que nunca recebeu reclamação do bastonário. Ficámos esclarecidos.


Marinho, o bastonário anarquista, porque saudoso de várias ordens perdidas, veio assim, muito corporativamente, introduzir a desordem num dos clássicos segmentos do nosso permanecente corporativismo, reclamando o regresso ao desespero do "numerus clausus". Muito democraticamente, tratou de denunciar os lucros cessantes e os danos emergentes da democratização do ensino, na sua vertente de reino da quantidade. Espero que os conselhos directivos, científicos e pedagógicos das escolas de direito, públicas, privadas e concordatárias, inspirados pela táctica do senhor ministro, não façam como a avestruz e metam a cabeça na poeira dos códigos, nas regras de Bolonha e nas leis que apelam para o autofinanciamento das escolas.
Já agora, será que alguém, que foi convidado a sair das universidades públicas e privadas portuguesas, por manifesto plágio de dezenas e dezenas de páginas numa dissertação de doutoramento, pode agora exercer o título obtido em Espanha e aqui apenas registado, contribuindo para essas fábricas denunciadas por Marinho Pinto? Eu descobri um deles, noutro dia, ao consultar a Internet... apenas espero que não vá para secretário de Estado das universidades, até porque o partido onde milita ocupa o governo de Portugal.


Se houvesse por aí uma qualquer mentalidade liberalmente pública, talvez alguém pudesse sugerir que as escolas de direito passassem mesmo a pessoas colectivas públicas, verdadeiramente corporativas. O governo largava-as das reitorias e dos ministérios e dava-lhes um estatuto equivalente ao da Ordem dos Advogados. O Estado ficava com a maioria das quotas, passando as outras para os advogados, magistrados e antigos licenciados, fazendo interferir, nos actos de avaliação dos alunos, magistrados judiciais, como outrora acontecia. Julgo que esta privatização por corporações, seria passível de revestir uma forma especial de fundação, onde as principais receitas até podiam vir da indústria dos pareceres. Para culminar o processo, também sugiro que se realize uma espécie de concordata entre o principado e estes novos clérigos do neocorporativismo...