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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

8.1.08

Turcos por turcos, sempre prefiro o Ataturk


Ontem, foi dia de intenso regresso, com aulas em pensamento vivo, pelo estímulo das circunstâncias do tempo e do lugar, daquele experimentado aqui e agora que foi viver no coração da Eurásia. Recordo a neve bem tocada pelo vento, os sons do minarete e, lá do fundo da memória, os sonhos maus que arrepelaram o silêncio da noite. Recordo esses dias de véspera, plenos de neve política, feios de frio de humanidade, fartos de ventania da história. E regresso a outras nuvens cinzentas que não deixam ver sol, entre jogadas do BCP, discursos de Zita Seabra, Manuela Ferreira Leite e Vítor Constâncio. Mas, pouco a pouco, o sol vai derretendo os flocos de neve que cobrem as ruas.


Decidi não visitar o pavilhão onde o sultão recebia os súbditos em audiência privada, quando as cunhas se metiam num longo e quadrado sofá vermelho, situado diante do harem. No pátio, ao fim do dia, com o regresso da neve, há bandos de corvos que poisam ns árvores, todo um ambiente de branco cinzento que vai ocupando esta Turquia ocidental. Berardo continua a discursar e, nas vidraças do bar de uma qualquer universidade, está afixado o último artigo publicado pelo senhor director, sem o habitual carimbo autorizador da afixação, segundo os regulamentos em vigor, que tem de vir do mesmo director, porque, segundo as glosas cesaropapistas, "quod princeps dixit legis habet vigorem", porque "princeps a legibus solutus", porque o inspector-geral pode fumar cigarrilha nos primeiros minutos de aplicação da regra que ele tem de vigiar.



Continuo sem saber o que aconteceu aos bizantinos depois da conquista turca de 1453, coisa que sucedeu já depois de termos tomado Ceuta e de termos chegado à ilha da Madeira, quando o Diogo Cão semeava padrões na foz do Congo e um pouco antes de Bartolomeu Dias morrer tentando, varando a Boa Esperança que, para ele, foi, definitivamente, a Tormenta. Por mim, não sou accionista de nada, nem de uma simples mula da cooperativa, apenas tendo quota na Pátria Portuguesa, SARL, que já foi nome de seguradora de responsabilidade limitada, antes de haver PRACE, embora reconheça que nos falta uma governança do bem comum, livre da finança e dos partidos.




Por outras palavras, em Portugal, a questão da economia continua a ser uma questão de finanças, porque a história do orçamento lusitano persiste em ser uma história de défice. Tal como a questão política continua a ser uma questão de um clube de reservado direito de admissão, isto é, uma assunto próprio daqueles directórios partidários que também vão decidir se o povo referendará, ou não, o Tratado de Lisboa.


Assim, eis que o Estado e o Mercado se vão parasitando, porque continua o regime salazarento de uma economia privada que não brota da livre concorrência do mercado, mas do proteccionismo e do condicionamento, que agora é meramente comercial, entre casinos e hipermercados, sem partidas para o "rally Dakar" do senhor João dos Lagos. Porque a nossa economia é típica das lojas dos trezentos, sendo mais modernização pelo consumo do que indústria, enquanto produção, à boa maneira do Oliveira de Figueira.

Isto é, gerimos pesadas heranças de uma rotina que rejeita a revolução da meritocracia e da consequente organização do trabalho nacional e continuamos em ditadura da incompetência. Porque totalmente complacentes face ao que vem da integração europeia, dos negócios da China e da globalização, não temos espaço para prémios de criatividade, invenção e produtividade individuais. Somos quem sempre fomos, uma virgem cauda da complacente Europa, em risco de sermos violados pelas turquias da Mitteleuropa e do próprio Leste, donde não enxergamos luz.


Maomé surgiu quase na mesma altura em que findavam as reformas do imperador Justiniano. Isto é, o Islão nasceu quando os bizantinos estavam no apogeu e não discutiam o sexo dos anjos. E apenas recordo que todas as grandes civilizações são filosoficamente contemporâneas, tal como todas as histórias nacionais são feitas de luz e de sombra. Até Ataturk, apesar de modernizante, sempre foi autoritário, mas não mandava afixar os seus artigos sobre a reforma da administração pública nas paredes do bar da mesquita, coisa que nem sequer faz o Alberto João Jardim, que é tão madeirense quanto Joe Berardo, até porque este, ao menos, tem que pagar, com juros, o empréstimo que obteve da CGD... Turcos por turcos, sempre prefiro o Ataturk.