a Sobre o tempo que passa: A ortodoxia da heterodoxia, a fé da heresia criativa e o dogma do antidogmatismo.

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.2.08

A ortodoxia da heterodoxia, a fé da heresia criativa e o dogma do antidogmatismo.


Chegou ao fim de um certo princípio o blogue de um companheiro de muitas ideias e outros tantos combates que sempre preferiu manter o anonimato e que, por isso mesmo, nunca me permitiu que, neste espaço, com ele dialogasse, porque o não faço com heterónimos nem com teorias da conspiração, em nome daquilo que considero ser a deontologia da blogosfera. Claro que o companheiro em causa que, depois de muitas insinuações, acabou por ter a honradez de se me revelar, vai, dentro de pouco tempo, mudar de heterónimo, ou mostrar o nome próprio, porque, mesmo com o registo civil ou baptismal que transportamos, podemos ter uma sobrelinguagem. Apenas acrescento, como tu sabes, que és daquela meia dúzia de pessoas a quem eu, na quotidiana vida social e profissional, trato mesmo por tu.


Por isso não serei dos que, ao heterónimo anónimo, lhe fazem o discurso fúnebre da despedida, bastando um mero adeus, até a um breve regresso. Há uma certa comunhão de coisas que se amam, nomeadamente uma certa ideia de Portugal, que impõe sujarmos as mãos no risco do combate pelos valores, sem sectarismo e sem a habitual sucessão dos congreganismos. E mesmo os ortodoxos têm a angústia de não conseguirem ser, com nome próprio, ortodoxamente heterodoxos. Por outras palavras, os sucessores da pátria de Vieira só têm a ortodoxia da heterodoxia, a fé da heresia criativa e o dogma do antidogmatismo.


"Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche" não pode ceder aos congreganismos e aos seus irmãos-inimigos anticongreganistas, meu caro "Je mantiendrai". E nós que, em termos de carimbo, estamos em aparentes campos inimigos, sabemos que somos irmãos naquilo que vai além das confrarias. Até porque nos cabe a missão de servir, sem procuraramos aquelas honrarias que matam a honra e aqueles academismos que matam a academia. Porque ainda há quem, sendo jovem, quer continuar a viver como pensa, sem pensar sequer como depois vai viver. E é para essas correntes que nos ultrapassam que temos o dever de servir as instituições que têm ideia de obra, regras de Estado de Direito e manifestações de comunhão.


Claro que o meu companheiro me acusa de milenarista, tal como eu te poderia acusar de seres mais católico do que cristão, como diria Comte, nesta pátria onde os ortodoxos acabam, quase todos, como o ex-anarquista, ex-republicano e futuro monarquista autoritário, Alfredo Pimenta, a sofrerem notas pastorais do Cardeal Cerejeira, onde cada um deles vai lendo a última pé-de-página do manual daqueles inquisidores que levaram Filipe II a ter que mandar o Santo Ofício condenar o padreca, autor daquele sermão que, do púlpito, pediu mais absolutismo para o filho de Carlos V. Só que, aqui e agora, não vale a pena discutir o sexo dos anjos, quando a cidade já está sitiada nas suas entranhas.


Se eu tivesse influência, nomear-te-ia para, ontem, fazeres um discurso sobre o nosso irmão Vieira, o do quinto-império, neste tempo de bebedeira dos poderes sem autoridade e dos autoritários empaturrados em salamaleques. Até te convidaria para que secretariasses o ministerial encontro do novo ministro dito da cultura com todos os antigos ministros do Antigo e do Novo Regime que ocupam os cadeirões daquilo que dizem a alta cultura institucional, e que são quase todos da estirpe dos buissidentes, dos tais que não compreendem que "vencer é ser vencido" e que só vencem os chamados "vencidos da vida" que ousam "a esperança dos desesperados".
P.S. Repara como, hoje, vai ser difícil ao habitual espião de serviço, cumprir a habitual folha do carreirismo, levando a fotocópia deste "postal" ao "big brother", no seu pidismo de altas esferas congreganistas...